Não foi sem preocupação que entramos naquele micro-ônibus, apesar de não escondermos a expectativa provocada pela autêntica aventura que iniciaríamos. Era, sem dúvida, uma oportunidade única, uma experiência que, sabíamos, jamais seria esquecida.
Ao todo, 17 jornalistas brasileiros fariam a travessia do Muro de Berlim, símbolo da guerra fria e da divisão da Europa, que duraram mais de 40 anos, acelerando a decomposição do bloco comunista europeu e permitindo a posterior reunificação da Alemanha após a sua derrubada a marretadas em 9 de novembro de 1989.
Era maio de 1973, há 50 anos. Vale recordar. Acompanhávamos uma excursão da Seleção Brasileira pela África e Europa. Eu fazia a cobertura para a Folha de S. Paulo. Após o jogo contra os alemães no estádio Olímpico de Berlim, na então Alemanha Ocidental, cruzaríamos a muralha e pegaríamos um avião do outro lado, na Alemanha Oriental, rumo a Moscou, na União Soviética (Rússia de hoje).
Estavam comigo: João Prado Pacheco (do Estadão), Roberto Avallone (Jornal da Tarde), Milton Peruzzi (Rádio Gazeta), Osmar Santos (Rádio Jovem Pan) Oldemário Touguinhó e Dácio Mallandro (Jornal do Brasil), Altair Baffa (Jornal dos Sports), Hideki Takisawa (O Globo), além de outros companheiros do Rio, de Minas Gerais, de Pernambuco e do Rio Grande do Sul.
Deixamos aos poucos o centro de Berlim Ocidental, arborizado, com grandes avenidas e edifícios modernos já na década de 1970. À medida que o nosso micro-ônibus se aproximava da “fronteira”, a paisagem ia rapidamente mudando: ruas estreitas, sobrados pequenos, geminados, com janelas cobertas por tijolos, mostrando muitos buracos de rajadas de metralhadoras nas paredes, um rombo aqui, outro ali. Sinais da II Guerra Mundial que se perpetuavam. Ninguém nas ruas. Muito silêncio.
Enfim, a surpreendente visão da gigantesca Porta de Brandemburgo, imponente e fria, tendo à frente a grosseira muralha de 162 quilômetros. O micro-ônibus entrou pela lateral, seguindo por um corredor isolado. À frente via-se uma guarita.
A Porta de Brandemburgo surgia imponente à esquerda. Como em um filme, a gente se recordava daquelas pessoas que tentavam passar correndo do lado oriental para o ocidental na busca desesperada por parentes e eram alvejados pelos fuzis dos soldados da Alemanha comunista.
Mas antes da chegada ao Portão de Brandemburgo havia uma imensa cerca de arame farpado e um vazio enorme dos lados. No meio, um único caminho, estreito, rumo à travessia. O micro-ônibus seguia lentamente em direção à fronteira. Dentro dele, silêncio total. Todos os jornalistas olhavam através das janelas, observavam detalhes, mas não trocaram palavras.
De repente, soldados fortemente armados determinaram que o veículo parasse. Porta aberta, entraram três militares. Um ficou ao lado do motorista, empunhando um fuzil. Um segundo passou a caminhar pelo corredor e a exigir os passaportes dos jornalistas brasileiros. Um terceiro vinha após, só observando as pessoas, olho no olho, semblante frio. Às vezes parava para fixar alguém mais demoradamente.
Essa revista parecia estar levando horas. Os três soldados desceram, reuniram-se à frente do ônibus, observaram cuidadosamente todos os documentos, um a um, com uma calma irritante. Depois perguntaram o que o grupo estava fazendo ali. Explicações dadas, finalmente concluíram a revista e liberaram o veículo, para alívio de todos.
Só quando o micro-ônibus retomou sua lenta caminhada em direção ao Portal de Brandemburgo, girou à esquerda e cruzou-a surgiram os primeiros comentários, principalmente na passagem pela imensa porta. O que mais impressionava era o isolamento do local. Ninguém à vista. Aos poucos, o muro ia ficando distante.
Dentro de Berlim oriental, o “mundo” parecia acabar naquela ‘fronteira’. Milhares de alemães desse lado oriental ainda tentavam atravessar para escapar do regime e ter uma vida melhor no lado ocidental. Eles tentavam entrar de todas as formas, em porta-malas, dentro de capas de pranchas de surf, escondidos em aviões cargueiros, por meio de balões… Procuravam nadar pelo rio para chegar à “liberdade”, Berlim ocidental.
Muitas destas tentativas de travessia acabaram tragicamente. Consta nos documentos oficias que os guardas do muro, mataram 270 fugitivos, e é estimado que 940 morreram durante o processo de travessia.
No nosso trajeto, voltaram a aparecer casas pequenas, todas de janelas fechadas, até que o ônibus seguiu rumo à pista do aeroporto de Berlim Oriental. Antes do embarque, em um assustador avião russo – um Topolev da empresa estatal Aeroflot – uma nova revista das autoridades alemãs foi realizada.
Desta vez abriram malas, sacolas, pacotes. E confiscaram tudo o que consideravam “proibido”: bebidas, revistas e filmes comprados pelos brasileiros em Berlim Ocidental. Quando o sinistro avião enfim decolou, todos respiraram aliviados, embora não confiassem nem um pouco naquele aparelho. Felizmente, porém, todos desembarcaram sem sustos em Moscou, onde o Brasil jogaria. mas ainda com as inesquecíveis imagens do Muro de Berlim na memória.
Construído em 1961, o Muro da Vergonha tinha 162 km separando as Alemanhas. Era de concreto, encimado por um cano ou cerca de metal com 3,5 a 4,2 metros de altura. A distância para o outro lado da fronteira era de 50 metros. Nesse espaço existia ainda uma armadilha para tanques (fosso de 3 a 5 metros de largura), uma pista operacional em faixa de areia de 6 a 15 metros de largura, obstáculos para tanques e no outro extremo, quase grudada com o lado ocidental, uma cerca de arame, com 2 metros de altura, equipada com sensores e alarmes e muita iluminação. Por último, uma parede interna de malha de aço com 2 metros de altura.
Só 16 anos após a tensa travessia dos jornalistas brasileiros, em 9 de novembro de 1989, Gunter Schabowski, secretário distrital do Partido Comunista da Alemanha Oriental em Berlim anunciou a decisão tomada pelos seus chefes de permitir o trânsito limitado e controlado de alemães orientais através do Muro de Berlim.
A concessão deveria ser para o dia seguinte, para aliviar as pressões sofridas pela República Democrática da Alemanha (RDA), que vinham aumentando no verão e outono, à medida que Mikhail Gorbachev deixava cada vez mais claro que a União Soviética não ia mais servir de escora para os marxistas congêneres do Leste Europeu. Mas em vez de dizer que a concessão seria para o dia seguinte, Schabowski declarou que as novas regras entrariam em vigor “imediatamente, sem demora”.
Foi o que bastou. Em questão de horas, emocionados berlinenses do Leste passaram pelos guardas de fronteira, forçaram a abertura das passagens através do muro e entraram e, bandos em Berlim Ocidental. Logo estavam dançando em cima do muro, arrancando lascas com martelos e pés-de-cabra e depois, literalmente, derrubando-o com motoniveladoras e escavadeiras.
Assim, o próprio símbolo de um continente dividido por quase meio século foi desmoronando, quase da noite para o dia. Mais tarde, um banquete de gala no Hotel Adlon recepcionou os três chefes de estado que estiveram no centro do drama: Mikhail Gorbachev (da União Soviética), Helmuth Kohl (da Alemanha) e George Bush (dos Estados Unidos).
Novembro de 2024 marcará a passagem de 35 anos da queda do Muro da Vergonha, que separou a Alemanha. Hoje, prevalece a imponência do Portão de Brandemburgo (“Brandenburger Tor”), obra construída entre 1789 e 1791, símbolo da cidade de Berlim, símbolo da prosperidade e da unificação alemã.