É difícil, neste momento, ao ocupar um espaço tão importante como este da Logweb, e não falar da situação brasileira atual, exatamente na semana em que tivemos a finalização – pelo menos da parte principal – do julgamento de um grupo de representantes do governo brasileiro que, imaginando-se acima do ‘bem e do mal’, queriam abolir o Estado Democrático de Direito no Brasil e transformar este País em uma ditadura.
Já escrevi, aqui mesmo no site da Logweb¸ que “a Democracia Brasileira precisa ser defendida por todos nós. E sempre, pois não se pode subestimar o poder e a insistência de seus inimigos para derrubá-la”, dia 30.11.2023.
Naquela oportunidade, entre diversas informações obtidas, a constatação das circunstâncias da época, e com base em pesquisa da Fundação Getúlio Vargas, que indicava que cerca de 61% dos brasileiros não acreditavam na Justiça, posto que a consideravam muito politizada, fiz algumas ponderações, pois se à primeira vista podia não parecer, os números apresentados mostravam-se, pelo menos para mim, perigosíssimos, na medida em que sabemos ser a Justiça aquela que tem total e principal responsabilidade pela ‘guarda’ da Constituição, a lei maior de uma nação.
Indiscutivelmente preocupante, uma vez que dentre as muitas e diversas consequências, essa “insatisfação com a Justiça” traduz-se, ao longo do tempo, e não só no Brasil, como uma descrença na própria Democracia.
Quando li no editorial do Estadão do dia 24 pp (“Os hunos do Congresso”), que “a título de salvar seu encalacrado líder, parlamentares bolsonaristas não se importam em tumultuar o País com ameaças de impeachment de ministro do STF e a defesa de uma inaceitável anistia”, não imaginava que os ‘adoradores’ do Bolsonaro chegariam a tanto.
Desde a aprovação de uma anistia (1) para todos os criminosos da tentativa de golpe de Estado, até uma emenda para que se altere, por conveniência própria, a lei que trata do ‘foro especial’, tudo parece ser possível para esses fanáticos que nada veem à suas frentes, além de seus interesses. Ou melhor, dos interesses da família Bolsonaro e daqueles que, silenciosa e secretamente, o apoiam.
De qualquer forma, e como já esclareceram Steven Levitsky e Daniel Ziblatt (“Como as democracias morrem”, Zahar, 2018), “a investida contra a democracia começa lentamente” e de forma imperceptível para a maioria da sociedade, pois, entre outras características, as “eleições continuam a ser realizadas”, os “políticos de oposição ainda têm seus assentos no Congresso” e os “jornais independentes ainda circulam”. Na verdade, são dados pequenos passos, até certo ponto “insignificantes”, já que individualmente “nenhum deles aparenta de fato ameaçar a democracia”. Mas são passos realizados.
E, para piorar, como também alertaram Levitsky e Ziblatt, um dos problemas de difícil solução é o fato que “os cidadãos também se mostram mais propensos a tolerar – e mesmo a apoiar – medidas autoritárias durante crises de segurança, sobretudo quando temem pelo seu bem-estar!”
Todos sabemos que em qualquer sociedade democrática do mundo atual, maiores serão os riscos de se instalar um regime autocrático, quanto maior for o desrespeito à justiça e a sua Suprema Corte.
Entretanto, e infelizmente, é exatamente isso que o bolsonarismo vem ‘praticando’ já há algum tempo, ao fazer críticas e desenvolver narrativas que não tem outros objetivos a não ser intimidar e enfraquecer o judiciário, de forma a mantê-lo, se possível e o quanto puder, subserviente. Utilizaram, inclusive, da pressão de governos estrangeiros. E não de qualquer governo, mas do governo norte-americano.
E aqui é preciso que se comente o quanto foi difícil imaginar os motivos pelos quais o atual presidente dos Estados Unidos foi ‘seduzido’, posto que pelo menos até agora não economizou ameaças ao Brasil, inclusive diretamente ao Supremo Tribunal Federal, como forma de tirar o ex-presidente Jair Bolsonaro da enrascada que ele mesmo criou e se meteu. Seduzido de forma a acreditar em mentiras e fantasias contadas por pessoas que, além de desqualificadas e desconhecedoras da história e da política nacionais, também se transformaram em traidores.
Aliás, quando se fala em presidente dos Estados Unidos, vale à pena citar um trecho do artigo do sociólogo Simon Schwartzman, publicado no Estadão do último dia 12 (“As duas Américas”), que se refere à Donald Trump como um presidente no qual o único valor existente, e pelo qual ainda vale lutar, “é o do dinheiro, cada vez mais concentrado”.
Está claro que há, aqui no Brasil, um processo claro de agressão ao STF (2), pois, se queira ou não, durante os últimos 15 anos foi ele, um dos três poderes constituídos, o que mais contribuiu para se mantivesse, em pleno funcionamento o regime democrático e o Estado de Direito, tais como estabelecidos na Constituição de 1988.
Aliás, o julgamento que ora presenciamos, e com tudo o que foi apresentado, comprovou de forma cabal os riscos pelos quais correu o Brasil nos últimos cinco anos. Sérios e desnecessários. Não se pode deixar de lembrar que desde a sua posse em 2019, o governo Bolsonaro, além de ignorar os demais poderes, trabalhou incessantemente para se manter no poder, independentemente do resultado de quaisquer eleições.
Como escrito no editorial do Estadão “Os hunos do Congresso”, “Bolsonaro passou a vida destilando ódio em seus atos e falas – seja como mau militar, quando manchou a farda com sua indisciplina, seja como deputado, quando defendeu o fechamento do Congresso e o fuzilamento de adversários, seja como presidente, quando ameaçou jornalistas, desacreditou o sistema de votação e sabotou a vacina contra a covid-19 só porque foi produzida por um adversário político. Como toda força reacionária e destrutiva, os bolsonaristas atuam como os hunos: por onde passam, nem grama nasce”.
Mesmo sem condições mínimas de aprovarem o que propõem, os bolsonaristas de plantão, ainda acreditando na tese de “quanto pior melhor”, continuarão difundindo mentiras e falsas ideias, seja a de que Bolsonaro é vítima, que existe neste País uma ditadura do judiciário, ou que, caso não se ceda às pressões do governo Trump, teremos um ambiente propício a outros tipos de problemas. Mais graves, é claro.
Nada surpreende, inclusive, o fato de utilizarem, no dia de comemoração da independência do Brasil, a bandeira dos Estados Unidos como símbolo de resistência. No dia de comemoração da independência do Brasil? Pois é, um verdadeiro ato patriótico!
Não nos deixemos enganar, pois os leais seguidores do pensamento bolsonarista, fanáticos, negacionistas, antinacionais e totalmente cegos à realidade que se apresenta, continuarão pressionando para alcançarem seus objetivos. Como escrito no editorial do Estadão do último dia 13: “a tropa liberticida (de bolsonaristas) pretende continuar a atazanar os brasileiros, criando sucessivas crises institucionais e prejudicando o Brasil com o objetivo último de desmoralizar a democracia”.
Não lamento, aqui, apenas as narrativas e as mentiras construídas para alimentar ilusões e desejos antidemocráticos impossíveis de serem realizados, como já frisou o STF a respeito de um eventual projeto de anistia. É tudo muito mais triste, pois em um Brasil no qual problemas muito mais urgentes precisariam ser discutidos, eles são deixados de lado. Um verdadeiro desserviço a que se prestam políticos sem quaisquer envolvimentos com a Nação brasileira.
Não se trata, aqui, de se discutir entre esquerda ou direita, entre Bolsonaro ou Lula, mas sim de Democracia, Estado de Direito e Brasil.
Felizmente, nesta semana, tivemos o desfecho que todos nós, brasileiros, democratas e patriotas, esperávamos. Prevaleceu a justiça contra o golpismo, tendo o Supremo Tribunal Federal (STF) interrompido “com uma nefasta tradição de leniência ao condenar Bolsonaro e seus comparsas civis e militares à prisão pela tentativa de impedir a posse de um presidente legitimamente eleito” (“Justiça histórica contra o golpismo”, editorial do Estadão do dia 12.09.25).
O sistema judiciário brasileiro, em especial o STF, não foi ou está sendo atacado por eventuais erros, mas por seus acertos, na medida em que ele se contrapõe de forma firme, correta e constitucional contra o golpismo e as tentativas de se desrespeitar a Constituição brasileira. Vale à pena ressaltar que o golpe não ocorreu por causa do fracasso dos golpistas, mas principalmente devido à resistência de nossas instituições – Política Federal, Promotoria Pública Federal e Supremo Tribunal Federal, entre outras. Como nos ensinou o professor da FGV, Carlos Pereira, no Estadão do último dia 1: “O projeto autoritário de Bolsonaro não fracassou por seus erros pessoais, mas por barreiras institucionais”.
Por incrível que possa parecer, a desonra de um ex-presidente, três generais de quatro estrelas e um almirante, ao final de tudo, resgatou parte de algumas das condições imprescindíveis à manutenção da Democracia e do Estado de Direito no Brasil. Foi inevitável a melhora da imagem do Brasil como um País democrático, no qual as leis, a soberania e a independência entre poderes foram respeitadas. A condenação dessas pessoas confirma, ratifica e consolida tudo o que nós, brasileiros democratas, conquistamos em 1988, ao aprovar a Constituinte Cidadã.
O Brasil precisa de uma direita liberal, mas que se desapegue do bolsonarismo e de tudo aquilo que ele representa. A estratégia do governador de São Paulo, como comentado no editorial do Estadão do último dia 8, “pode até ter uma eficácia eleitoral, mas sem se distinguir com clareza e coragem do mal que Bolsonaro representa, o projeto será maculado pela genuflexão pusilânime a um golpista contumaz” (“Tarcísio e o pós-Bolsonaro”).
Mais uma vez vou me socorrer do Estadão que, em seu editorial do último dia 13 foi definitivo sobre o julgamento histórico que envolveu Bolsonaro e seus ‘amigos’ próximos (“Bolsonaro, um cadáver insepulto”), posto que a trajetória de Bolsonaro, ao desprezar a vida partidária, caracterizou-se como a de “um deputado medíocre que nunca escondeu que seu interesse maior era fazer da política um meio para enriquecer a si e a família, jamais para servir à sociedade”, não havendo “razão moral ou factual para que as forças políticas verdadeiramente comprometidas com os valores democráticos se sacrifiquem em defesa de alguém que tanto fez para acabar com a mesma democracia que é o húmus da atividade partidária”.
Parece-me claro, portanto, que nosso País, uma das maiores Democracias do mundo, não pode continuar alimentado condições que produzam conflitos entre seus três poderes. Principalmente quando isso se faz em nome do senhor Jair Messias Bolsonaro, “um desqualificado condenado pelas urnas, pela Justiça e, seguramente, pela História”. “Longe dele, os genuínos democratas; a seu lado, os oportunistas associados a um sujeito que há décadas se dedica a estorvar a vida nacional e que, mesmo atrás das grades, ainda é capaz de causar muita confusão”. Aliás, assusta-me o ‘silêncio’ da população e do Congresso com relação a este assunto.
Não há dúvidas que a Justiça brasileira, mesmo pressionada por forças e influências internas e externas, e já há alguns anos, mostrou-se à altura, não só na preservação dos valores democráticos, mas também na defesa da Constituição, do povo brasileiro e do Brasil. Ao contrário de outros países, a Democracia brasileira se engrandeceu. E neste aspecto, queiram ou não, o Brasil está ensinando os Estados Unidos e o mundo.
(1) “Anistia e a defesa da ‘pacificação’” (jornalista e analista político Diogo Schelp, Estadão de 08/09/25): “Perdoar quem tentou contra a democracia não reduziria em nada a polarização ou a alegada desarmonia institucional do País. Apenas premiaria aqueles que a promovem”.
(2) No Brasil e em Israel, “o Judiciário passou a ser não apenas criticado, mas frontalmente atacado por líderes e apoiadores da extrema direita, de forma coordenada e articulada, com intensas campanhas bem financiadas de desinformação. O que está em jogo, nesses contextos, vai muito além de eventuais discordâncias, saudáveis numa democracia. Trata-se de tentativa deliberada de deslegitimar os freios e contrapesos democráticos” (“Judiciários sob ataque: Bolsonaro, Bibi e Trump” – Pedro Kelson, diretor executivo do Instituto Brasil Israel, Estadão de 06/09/25).