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A dicotomia cognitiva e a polarização social – por Foch Simão

Após milênios de desenvolvimento intelectual e social, o Homo sapiens parece apresentar indícios de um processo de regressão cognitiva coletiva. Tal fenômeno manifesta-se de maneira transversal nos diferentes estratos da sociedade contemporânea, caracterizando-se pela crescente polarização de posicionamentos em múltiplos domínios, sejam eles políticos, ideológicos, culturais e até mesmo esportivos.

A divergência de opiniões, historicamente responsável pelo avanço do pensamento crítico e pela consolidação das bases da sociedade moderna, vem sendo gradualmente substituída por uma lógica dicotômica marcada por certezas absolutas e pela rejeição sistemática da alteridade. Essa dinâmica contribui para a fragmentação do tecido social, alcançando inclusive estruturas primárias de convivência, como o núcleo familiar, e enfraquecendo os mecanismos tradicionais de mediação social e diálogo racional.

Esse cenário encontra ressonância no princípio clássico divide et impera, amplamente empregado como estratégia política e militar desde a Antiguidade, notadamente por líderes como Júlio César, Filipe II da Macedônia e Napoleão Bonaparte. A essência dessa estratégia reside na exploração ou intensificação de divisões internas como meio de enfraquecer coletividades, tornando-as mais suscetíveis ao controle externo ou à dominação estrutural.

Sob essa perspectiva, o questionamento “a quem convém o crime?”, frequentemente associado ao brocardo latino “cui bono?”, ultrapassa o campo jurídico e adquire relevância analítica no âmbito das ciências sociais. Tal princípio sugere que a identificação dos beneficiários de determinado fenômeno social constitui elemento central para a compreensão de suas causas, dinâmicas e mecanismos de reprodução.

A polarização cognitiva contemporânea, portanto, não pode ser compreendida como um fenômeno aleatório ou meramente espontâneo. Em uma civilização tecnologicamente avançada, altamente conectada e demograficamente expansiva, as idiossincrasias individuais e a pluralidade de perspectivas passam a ser percebidas como entraves aos projetos utilitaristas de gestão social. Nesse contexto, a homogeneização do pensamento emerge como instrumento funcional para a administração de massas, reduzindo a complexidade social e facilitando tanto o controle político quanto a absorção de modelos de produção e consumo em larga escala.

É na perspectiva desse ambiente que atuam agentes subversores da ordem social vigente, os quais promovem a disseminação deliberada de teses polêmicas e socialmente sensíveis com o intuito de fomentar a cisão e intensificar conflitos simbólicos. Para tal finalidade, recorrem à rotulação sistemática dos dissidentes por meio de epítetos depreciativos, frequentemente carregados de conotações desumanizantes, buscando deslegitimar o debate racional e enfraquecer os fundamentos do convívio civil.

Esses atores direcionam seus ataques a instituições estruturantes da vida social, como a religião, as tradições conservadoras e os sistemas de crenças políticas divergentes, atentando contra a estabilidade social ao promover a desconstrução de dogmas, valores e referenciais civilizatórios historicamente consolidados. Tal movimento se insere em tentativas de substituir essas estruturas por construções ideológicas próprias, frequentemente desprovidas de lastro histórico, mediação institucional ou consenso social amplo.

A análise da dicotomia cognitiva e da crescente polarização social revela que tais fenômenos não constituem meras disfunções episódicas da vida contemporânea, mas expressões estruturais de um modelo de organização social que privilegia a simplificação do pensamento em detrimento da complexidade inerente à condição humana. A substituição do dissenso racional por antagonismos binários compromete não apenas a qualidade do debate público, mas também os próprios fundamentos da coesão social e da democracia deliberativa.

Ao transformar divergências legítimas em conflitos identitários irreconciliáveis, o tecido social torna-se progressivamente fragmentado e vulnerável à manipulação. Nesse contexto, a instrumentalização de pautas sensíveis e a deslegitimação sistemática do outro operam como mecanismos eficazes de controle simbólico, alinhados à lógica do divide et impera. A polarização, longe de representar um subproduto inevitável da pluralidade social, passa a funcionar como tecnologia de poder, capaz de neutralizar resistências, reduzir a complexidade social e facilitar a gestão de massas.

A homogeneização do pensamento e a censura velada ainda que travestidas de emancipação ou progresso, resulta paradoxalmente no empobrecimento do espaço público e na erosão de referenciais civilizatórios historicamente construídos. Quando instituições mediadoras como a família, a religião, as tradições culturais e o debate político plural são sistematicamente desqualificadas, abre-se espaço para formas de racionalidade instrumental que priorizam eficiência, controle e previsibilidade em detrimento da autonomia crítica e do diálogo.

Diante desse cenário, a superação da dicotomia cognitiva exige a revalorização do pensamento complexo, do pluralismo genuíno e da disposição ao dissenso informado. Somente por meio do resgate do diálogo racional e do reconhecimento da alteridade como elemento constitutivo da vida social será possível conter os processos de fragmentação e preservar as bases civilizatórias que sustentam a convivência democrática em sociedades cada vez mais interconectadas e tecnologicamente mediadas.

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