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A geringonça do novo IRPF – por Marcos Cintra

A recente aprovação do Projeto de Lei (PL) 1807 na Câmara dos Deputados, ocorrida em 1º de outubro de 2025, marca um momento controverso no Imposto de Renda (IR) no Brasil, um tema há muito debatido e postergado.
Empresto aqui a expressão “geringonça”, cunhada pelo renomado tributarista Everardo Maciel, para descrever essa iniciativa legislativa que, em sua essência, revela uma combinação desarticulada de medidas corretivas
pontuais e equívocos estruturais profundos, carecendo de uma visão sistêmica e coerente.

O PL 1807 tem duas partes fundamentais. A primeira, que eleva o limite de isenção do Imposto de Renda Pessoa Física (IRPF) para R$ 5 mil mensais, representa uma medida acertada e há muito devida. Esta correção visa mitigar os efeitos da inflação na incidência tributária (bracket creep), um fenômeno onde o aumento nominal da renda, sem um ajuste correspondente nas tabelas de imposto, empurra o contribuinte para faixas de alíquota mais elevadas, mesmo que seu poder de compra real não tenha aumentado.

De acordo com cálculos baseados na correção pela inflação acumulada desde 1996 o limite de isenção deveria ultrapassar os R$ 5 mil se os governos sucessivos tivessem aplicado ajustes anuais, dependendo do método de
indexação. Por exemplo, um trabalhador que em 1996 era isento, hoje, com a mesma capacidade de compra, mas um salário nominal de R$ 5.000, estaria pagando imposto, evidenciando a regressividade do sistema. Questiona-se, portanto, por que essa correção não foi implementada anteriormente: seria negligência fiscal ou uma estratégia deliberada para manter a arrecadação elevada às custas dos contribuintes?

Essa correção do limite de isenção não constitui uma concessão generosa, mas sim o cumprimento tardio de uma obrigação social, corrigindo abusos históricos que erodiram o poder de compra da classe população e distorceram a progressividade do IR. Estima-se que dezesseis milhões de contribuintes sejam beneficiados, desafogando orçamentos familiares. Países como Alemanha e Canadá utilizam mecanismos de indexação automática ou revisões periódicas de suas faixas de isenção e alíquotas para mitigar a inflação fiscal, garantindo que contribuintes não sejam indevidamente penalizados e que a progressividade seja mantida.

Contudo, a segunda parte do projeto revela-se desastrosa, configurando um dos piores arranjos tributários já propostos no contexto brasileiro, com potencial para desestimular investimentos e gerar incerteza jurídica.

A compensação pela queda na arrecadação prevista– estimada em R$ 25 bilhões anuais– deveria priorizar cortes em gastos públicos ineficientes, como subsídios questionáveis, despesas administrativas infladas ou a revisão de
privilégios fiscais setoriais. Em vez disso, o governo optou por onerar a classe média e profissionais liberais de “alta” renda, impondo tributação sobre rendas mensais acima de R$ 50 mil. Este valor, embora significativo, não qualifica seus detentores como “super-ricos” em nenhum lugar no mundo, como afirmou o relator do PL 1807 Deputado Arthur Lira.

Pior ainda, introduz-se o chamado IRPFM (Imposto de Renda Pessoa Física Mínimo), um tributo não explicitamente previsto na Constituição, o que levanta sérias questões de inconstitucionalidade, especialmente no que tange ao princípio da legalidade estrita em matéria tributária (Art. 150, I da CF/88).

Esse mecanismo implica bitributação sobre rendimentos já submetidos a impostos, violando o princípio da não cumulatividade e da capacidade contributiva. Por exemplo, dividendos distribuídos por empresas, anteriormente
isentos no IRPF desde a Lei 9.249/1995, agora enfrentam dupla incidência: primeiro no Imposto de Renda Pessoa Jurídica (IRPJ) e Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) – que já somam alíquotas elevadas sobre o lucro da empresa (34% ou mais) – e depois no IRPF, como IRPFM. Isso eleva a carga efetiva total sobre o lucro distribuído para até 45% ou mais em alguns casos, dependendo do regime tributário da PJ e da alíquota do IRPFM, superando significativamente médias globais da OCDE (cerca de 25% para dividendos, considerando a tributação integrada).

Para ilustrar, se uma empresa lucra R$ 100, paga cerca de 34% de IRPJ/CSLL (R$ 34), restando R$ 66 para distribuição. Se sobre esses R$ 66 incidir uma alíquota de 10% de IRPFM, o acionista receberá R$ 59,40, o que representa uma carga total de mais de 40% sobre o lucro original. Questiona-se a racionalidade: por que não optar por uma reforma integrada que elimine duplicidades e simplifique o sistema, em vez de criar duas tabelas de IRPF superpostas – a da conhecida tabela do IRPF e outra para o imposto de renda mínimo – gerando confusão administrativa tanto para o contribuinte quanto para a fiscalização?

E mesmo que a carga tributária efetiva não chegue ao percentual de 34%, e o governo julgue que precise aumentá-la, que regule adequadamente a legislação tributária para evitar tal ocorrência, sem auxílio de medidas pontuais e improvisadas para atender necessidades momentâneas do Tesouro Nacional, como as propostas no PL 1807.

A complexidade agrava-se ao considerarmos a natureza contraditória de determinadas proposições. A reintrodução da tributação sobre rendimentos como os dividendos, que gozavam de isenção desde 1995, revela uma inconsistência flagrante nas políticas públicas. Durante quase três décadas, essa desoneração, independentemente de seus méritos ou deméritos, constituiu um pilar para o planejamento financeiro e as decisões de investimento no país, moldando expectativas e comportamentos econômicos. Agora, com uma abrupta mudança de rota, o Estado parece penalizar aqueles que operaram rigorosamente sob suas próprias regras, transformando um regime integrado de tributação numa fonte de arrecadação adicional. Essa volatilidade na sinalização fiscal não apenas gera insegurança jurídica, mas também erode a previsibilidade econômica e a confiança dos agentes no arcabouço regulatório, elementos cruciais para a atração e manutenção de investimentos de longo prazo.

É imperativo, portanto, reconhecer que um sistema tributário robusto e equânime não pode ser construído à base de remendos isolados ou “puxadinhos”, elaborados para atender a conveniências políticas imediatas ou
necessidades momentâneas do Tesouro Nacional. A complexidade intrínseca do cenário fiscal brasileiro exige uma reforma estrutural e sistêmica, pautada em princípios de justiça fiscal, eficiência econômica e simplicidade
administrativa. A abordagem fragmentada do PL 1807, com suas novas camadas de tributação e superposição de tabelas, apenas intensifica a já bizantina burocracia, desestimula o investimento produtivo e aprofunda a desconfiança na capacidade do Estado de legislar com visão estratégica. Em vez de uma solução, estamos diante de um agravo que compromete a estabilidade e a competitividade do país no cenário global, demandando uma
intervenção mais ponderada e coerente do Senado Federal.

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