Há momentos em que a arte parece decifrar o espírito do seu tempo. O lançamento de Frankenstein, dirigido por Guillermo del Toro em 2025, acontece justamente quando a humanidade vive uma transformação tecnológica que reposiciona nossa relação com a realidade. Assim como a Criatura concebida por Victor Frankenstein, as inteligências artificiais generativas surgem como entidades criadas pela engenhosidade humana, mas dotadas de comportamentos que escapam à compreensão imediata. A coincidência entre filme e contexto não é casual. Hollywood responde às angústias coletivas, oferecendo narrativas que espelham o medo do desconhecido.
Vivemos, como afirma o pensador e gestor cultural Eduardo Saron, um momento em que o “direito à realidade” se tornou central. A fronteira entre o real e o artificial está cada vez mais tênue, permeada por algoritmos, replicações digitais, manipulações informacionais e identidades sintéticas. Frankenstein ressurge como metáfora perfeita desse deslocamento. No romance de Mary Shelley, o horror nasce quando o criador perde o controle sobre sua obra. Hoje, o debate sobre IA envolve exatamente essa inquietação: até onde compreendemos aquilo que criamos?
Del Toro atualiza essa fábula num momento em que o planeta discute governança tecnológica, regulação global, viés algorítmico, desigualdades digitais e o papel das grandes corporações como novos centros de poder. Assim como a Criatura foi financiada por elites científicas europeias, as IAs são financiadas por conglomerados privados com recursos gigantescos, capazes de moldar comportamentos, preferências e percepções. A questão central deixa de ser apenas técnica: quem cria? Quem controla? Quem lucra? Quem fica à margem?
É nesse ponto que surge a necessidade de explicar o que está por trás dessa nova “criatura” contemporânea. As IAs generativas mais poderosas são construídas sobre modelos chamados LLMs, sigla para Large Language Models, ou Modelos de Linguagem de Grande Escala. São sistemas treinados com um volume gigantesco de textos, imagens e dados retirados da própria humanidade. Aprendem padrões linguísticos, conceitos, estruturas e relações entre palavras, frases e ideias. Diferentemente de programas tradicionais, não seguem regras fixas, mas inferem significados e produzem respostas com base em probabilidades. São máquinas que não “pensam”, mas simulam a linguagem humana de forma tão refinada que se tornam indistinguíveis em muitos contextos. Esses modelos, formados por trilhões de parâmetros, são o equivalente moderno da Criatura de Shelley: complexos, imprevisíveis, e profundamente dependentes das intenções de seus criadores.
A partir dessa compreensão, emerge o debate sobre o neocolonialismo tecnológico. A maioria das LLMs é treinada quase inteiramente em inglês ou mandarim, o que significa que o pensamento das máquinas se organiza por referências culturais e epistemológicas que não representam a diversidade global. Linguagens, modos de viver e formas de compreender o mundo produzidas na América Latina, na África e em tantas outras regiões tornam-se invisíveis nesse processo. Quando grande parte da inteligência artificial aprende a partir de duas matrizes civilizatórias específicas, corremos o risco de reforçar dependências históricas e desigualdades simbólicas. Não se trata apenas de tecnologia, mas de poder.
Desde o início da modernidade, a ciência despertou fascínio e temor. Hoje, a inteligência artificial provoca o mesmo efeito. As tecnologias que deveriam ampliar nossa capacidade humana passam, por vezes, a reorganizar a forma como percebemos o real. O risco não está apenas na rebelião hipotética das máquinas, mas na delegação crescente de decisões a sistemas cujos funcionamentos não são plenamente compreendidos por seus próprios criadores. Está em jogo nossa autonomia.
Frankenstein funciona como advertência. A Criatura não é monstruosa por nascer artificial, mas porque reflete a ambição humana sem responsabilidade ética. A ausência de limites e de governança destrói laços, desestrutura vidas e revela nossos pontos cegos. Da mesma forma, a tecnologia sem reflexão crítica pode gerar consequências irreversíveis. A sociedade precisa decidir se as IAs serão instrumentos de libertação humana ou mecanismos de dependência e controle.
Ao assistir ao filme, torna-se evidente que sua narrativa dialoga diretamente com o momento atual. Não é apenas uma releitura literária, mas uma fábula política, filosófica e tecnológica. A Criatura renasce nas telas no mesmo instante em que múltiplos modelos de IA renascem nos data centers do mundo. Ambos desafiam limites éticos, ambos expõem vulnerabilidades humanas. Se o romance original revela o que acontece quando o criador abandona sua responsabilidade, nossa era mostra o que pode ocorrer quando sociedades inteiras delegam às máquinas a mediação da realidade.
Este ensaio nasce dessa provocação. Frankenstein não é apenas um clássico revisitado, mas um convite à reflexão. A ciência sem ética produz monstros. A tecnologia sem governança produz abismos. O futuro sem o direito à realidade, como nos alerta Saron, produz confusão e perda de sentido. Diante das transformações que vivemos, precisamos aprender com Frankenstein antes que seja tarde. O momento é este.










