É preciso que haja uma parceria entre os poderes para a construção de uma política pública anticorrupção.
* Artigo publicado pelo Poder 360
O índice de percepção comparada da corrupção, que é divulgado anualmente pela Transparência Internacional, foi divulgado em 30 de janeiro. O documento deste ano mostra uma vertiginosa queda do Brasil de 10 posições num único ano. O país foi para a 104ª posição, num universo de 180 países examinados. É terrível a lembrança de que figuramos dentre as 10 maiores economias do mundo, mas, ao mesmo tempo, vivemos um quadro dramático de brutal desigualdade social, com péssima distribuição da riqueza, problemas graves em relação à separação dos Poderes, que se manifestam em crises recorrentes num ambiente democrático bastante degradado.
Apesar de sermos uma das 10 maiores economias do planeta, num único ano perdemos 2 pontos (temos 36) e despencamos 10 posições no ranking da percepção da corrupção. Estamos abaixo da média da OCDE (66), da média das democracias falhas (48), da média das Américas (43) e da média global (43). Temos pontuação semelhante a Ucrânia e Sérvia e estamos abaixo de Etiópia, Senegal, Vietnã e Cazaquistão, num ranking que é liderado pela Dinamarca, Finlândia e Nova Zelândia, onde, diga-se de passagem, há corrupção, mas, diferentemente do Brasil, ela é rigorosamente punida e extremamente controlada. Aqui, está há séculos absolutamente fora de controle.
Sempre é extremamente relevante lembrarmos de que estamos diante de um índice de caráter subjetivo, baseado na percepção de especialistas a partir de acontecimentos concretos –a corrupção que não deu certo. Não foi inventado e jamais existirá um “corruptômetro” que possa medir corrupção concreta na sua dimensão plena, total e absoluta. Levam-se em conta, portanto, os episódios que naufragaram, pois sabidamente é altíssimo o índice de subnotificação da corrupção, o que nos permite dizer que esses índices dizem respeito a pontas de icebergs. Não sabemos os números exatos da corrupção, mas se pode dizer seguramente que o custo de não a punir é simplesmente devastador sob o prisma social.
Por outro lado, é extremamente importante ponderar que esse índice não oscila em razão de acontecimentos ocorridos necessariamente nos 365 dias imediatamente anteriores a si. Ou seja, o esmagamento da Lei de Improbidade em 2021, pela lei 14.230 de 2021, o desbotamento da Lei da Ficha Limpa, para ficar em apenas 2 exemplos, são verdadeiras bombas de efeito retardado, que certamente estão relacionadas aos números de 2024.
Exatamente por isso que a crítica do ministro-chefe da CGU, em artigo publicado no jornal O Globo (“Mal do Paciente ou do Termômetro”) a mim parece exagerada. A Transparência Internacional há quase 30 anos realiza trabalho sério e louvável na esfera anticorrupção no mundo, hoje presente em mais de 110 países, a partir do trabalho pioneiro de Peter Eigen, ex-diretor do Banco Mundial.
Óbvio que somos humanos e podemos nos equivocar, mas o índice, apesar de subjetivo, é respeitável e relevante e não promete fidelidade absoluta àquilo que ocorreu nos 365 dias anteriores a ele –ele aponta tendências. As hostilidades a jornalistas no governo passado, que levaram o Brasil a cair ao nível vermelho no ranking da Repórteres sem Fronteiras, obstruindo a liberdade de imprensa e o direito de acesso à informação; assim como a manietação da Procuradoria Geral da República e da Polícia Federal, submetendo-as aos caprichos do governo, conforme detectado em recente relatório da OCDE; e o chamado “orçamento secreto”, hoje repaginado e modernizado, são fatores que certamente contribuíram de forma significativa para tal queda desastrosa.
Além disso, a Transparência Internacional frisa, em sua acertada análise interpretativa do índice, que detecta no afrouxamento da observância às regras estatutárias da Petrobras para blindar a companhia outro ponto problemático, uma vez que vetos do departamento de compliance vêm sendo sistematicamente desrespeitados, inclusive com a recontratação de quadros envolvidos em práticas corruptas. E justamente na Petrobras, cuja história ensejou a proposição e aprovação da Lei das Estatais.
A CGU está começando a reconstruir o sistema que foi danificado nos últimos anos, o que é positivo. Mesmo assim, o presidente da República acaba de escolher o PGR, pessoa de elevado caráter e trajetória irretocável, fora da lista tríplice, quebrando uma prática democrática que havia sido adotado nos 4 mandatos petistas.
Os pontos desfavoráveis ao governo constantes do índice e do relatório foram pesadamente atacados por diversas lideranças governistas, o que é lamentável, pois numa democracia é imprescindível saber-se lidar com a crítica com maturidade e dialogar com serenidade, sem reações destemperadas.
Salienta-se também a nocividade de reiteradas decisões monocráticas emanadas por ministros do STF anulando acordos de leniência anteriormente homologados pelo mesmo tribunal, causando extrema insegurança jurídica.
A decisão do eminente ministro Dias Toffoli, anulando as multas aplicadas à Novonor, antiga Odebrecht, enquadram-se igualmente nessa categoria. Ao serem criticadas pela Transparência Internacional, a TI sofre a consequência de ter contra si instaurada uma investigação embasada em fatos supostamente gravíssimos.
No entanto, com a proverbial assertividade, a jornalista Malu Gaspar indica em texto publicado na 2ª feira (5.fev.2024) no O Globo que tais supostos “fatos gravíssimos” que embasaram a decisão já foram desmentidos pela Procuradoria Geral da República. Hoje, mais de 80% das decisões do STF são monocráticas, subvertendo a ordem natural das coisas, mostrando-se necessária a edição de um sistema autorregulatório limitador, também dos tempos de vista, assim como de viagens a convite de particulares, para preservar o STF, evitando conflitos de interesses, seguindo o bom exemplo do Código de Ética estadunidense recentemente implementado.
É imprescindível que se cumpra a promessa feita em campanha, eliminando essa prática nefasta do “orçamento secreto”, instituindo transparência em tudo aquilo que diz respeito à temática orçamentária. Há vontade política nesse sentido? É imprescindível construir esse caminho junto com o Congresso Nacional.
Não tivemos jamais uma política pública anticorrupção. Para ser construída e aprovada, precisa ser fruto de parceria dos poderes. Assim como uma reforma político-partidária, com compliance e accountability nos partidos.
Corrupção significa fome, negação de saúde, de educação, de saneamento, de meio ambiente, de segurança, de moradia e de vida. E quem sofre mais são os mais pobres, que dependem mais do Estado para prover suas necessidades. A Transparência Internacional não pode ser responsabilizada pela corrupção que nos assola.
Mudar o rumo desse processo depende fundamentalmente de conscientização anticorrupção, educação, planejamento e um grande pacto entre os detentores do poder e de atitudes concretas que modifiquem significativamente o curso dos acontecimentos.
Roberto Livianu, 55 anos, é procurador de Justiça, atuando na área criminal, e doutor em direito pela USP. Idealizou e preside o Instituto Não Aceito Corrupção. Integra a bancada do Linha Direta com a Justiça, da Rádio Bandeirantes, e a Academia Paulista de Letras Jurídicas. É colunista do jornal O Estado de S. Paulo e da Rádio Justiça, do STF.