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Democracia tutelada: o risco da juristocracia – por Foch Simão

A história brasileira é fértil em episódios de manipulação política disfarçada de defesa da ordem. Entre eles, nenhum é tão emblemático quanto o Plano Cohen, em 1937. Apresentado à população como prova de uma conspiração comunista para tomar o poder, o documento descrevia ataques armados, saques, greves e um
suposto levante nacional. A imprensa, conivente com o governo, divulgou o plano como se fosse autêntico, gerando medo e histeria coletiva. O que o povo não sabia era que tudo não passava de uma fraude, urdida dentro da própria elite militar e instrumentalizada por Getúlio Vargas. Com o apoio da narrativa fabricada, Vargas
fechou o Congresso, anulou a Constituição e instaurou o Estado Novo, um dos períodos mais sombrios da nossa história republicana. O inimigo, inventado, serviu como justificativa para esmagar as liberdades civis.

O paralelo com o presente é inevitável. Hoje, processos e acusações contra lideranças políticas ressuscitam a lógica do “perigo iminente” como argumento para restringir direitos e concentrar poder. Não se discute aqui a inocência ou culpa de personagens específicos, mas a estratégia recorrente, é a de alimentar o medo da população para legitimar a supressão de garantias democráticas.

A lição é clara, sempre que se aceita a ideia de que um “mal absoluto” justifica qualquer ação, abre-se o caminho para a repetição dos erros do passado. O Brasil não pode esquecer que o Plano Cohen não foi apenas uma fraude documental, foi a prova de que o pânico social pode ser a arma mais poderosa do autoritarismo.

No Brasil contemporâneo, assiste-se à consolidação de um fenômeno perigoso, a juristocracia. Trata-se da transformação do Poder Judiciário em ator político central, ultrapassando suas funções constitucionais para assumir papéis de legislador, censor e árbitro das convicções sociais. O fenômeno não é exclusivo do Brasil. Em diversos países, cortes constitucionais passaram a expandir sua influência em nome da “defesa da democracia”. Mas em terras brasileiras o processo ganhou contornos alarmantes, decisões judiciais passaram a determinar
não apenas os limites da lei, mas também os contornos da própria vida política. Redes sociais são controladas, partidos são punidos, indivíduos são criminalizados não por ações concretas, mas por opiniões.

Quando o Judiciário se coloca como guardião supremo da moral pública, a soberania popular perde espaço. Afinal, quem fiscaliza os fiscais? Quem limita os que se julgam ilimitados? A democracia, em sua essência, pressupõe equilíbrio de poderes. Quando um deles se agiganta a ponto de ditar o que pode ou não ser debatido, rompe-se o pacto constitucional.

Essa ascensão da juristocracia não é mera questão técnica. É a substituição do debate plural pelas decisões de poucos. É o esvaziamento da política representativa e a entrega do destino nacional a intérpretes não eleitos,
autoproclamados infalíveis. O resultado é uma democracia sob tutela na qual o povo vota, mas não decide.

Nenhum poder se sustenta sem narrativa. E, no caso da juristocracia, essa narrativa é maniqueísta, de um lado, os defensores da ordem e da democracia; de outro, os “inimigos da pátria”. Essa simplificação moral é poderosa porque divide a sociedade em campos irreconciliáveis, legitimando qualquer ação contra o lado considerado “maligno”. Sob esse prisma, a Justiça deixa de ser imparcial. Tribunais se tornam palcos onde o veredito já nasce pré-definido: o adversário deve ser silenciado, não julgado. A divergência vira crime, a crítica se transforma em ato subversivo. Ao invés de mediarem conflitos, os tribunais passam a reproduzir a lógica de guerra, alimentando polarizações e eliminando a possibilidade de diálogo. Esse discurso maniqueísta, além de empobrecer a vida política, fortalece a legitimação do arbítrio. Afinal, quem se atreveria a defender o “mal”? Assim, toda censura passa a ser apresentada como medida de proteção, todo abuso se disfarça em ato de coragem moral.

O problema é que regimes autoritários sempre se valeram desse mesmo artifício. Ontem, era o inimigo comunista. Hoje, é o “negacionista” ou o “extremista”. Amanhã, poderá ser qualquer grupo que contrarie a narrativa dominante. O maniqueísmo é, em si, a negação da democracia, pois reduz a pluralidade à lógica
binária da salvação contra a perdição.

Enfatize-se que a liberdade nunca foi gratuita. Cada geração paga o preço de defendê-la contra novas ameaças. Hoje, esse preço se traduz na vigilância contra a tentação da tutela judicial travestida de defesa democrática. s propostas de regulação das redes sociais, as decisões que punem plataformas por conteúdos de usuários, a censura disfarçada de moderação, tudo aponta para um futuro em que o direito de pensar dependerá da anuência de autoridades togadas. Será esse o destino da democracia brasileira? A resposta deve ser clara, não existe democracia sem liberdade de expressão. A diversidade de opiniões, mesmo as incômodas, é o coração do regime democrático. Suprimir vozes em nome da proteção da ordem é trair o próprio fundamento da democracia.

O Brasil precisa decidir se confia em sua sociedade, permitindo o livre debate, ou se aceita viver sob uma democracia tutelada, onde tribunais decidem o que pode ou não ser dito. A escolha é dura, mas inevitável. Enquanto aceitarmos uma polarização maniqueísta, fabricada sob medida para dividir uma sociedade primária e estulta, haverá os artífices do totalitarismo camuflados por togas, fardas ou costumes diversos. O preço da liberdade é a eterna vigilância, se a entregarmos em nome de uma segurança ilusória, estaremos apenas repetindo o erro de 1937, sacrificando a democracia em nome de salvá-la.

“A democracia se preserva com a manutenção da liberdade e não com a imposição do medo”

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