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Depois do burnout: A fibromialgia como chave de limites, escolhas e vida – por Soraia Pena

Há dores que o corpo fala quando a alma se cala.

Por muito tempo, chamei isso de cansaço. Depois percebi: era o corpo pedindo socorro em forma de alerta.
A história que começa com burnout e chega à fibromialgia não é apenas sobre adoecimento — é sobre reencontro. Sobre entender que o corpo não é inimigo, é bússola.

O preço de cuidar sempre

Por quase três décadas, vivi os bastidores de Recursos Humanos: desligamentos, crises, mediações, dores que não saem nas planilhas. Fui treinada para acolher sem quebrar, mediar sem me abalar, decidir sem sentir demais. Até que o corpo começou a gritar.

O burnout, reconhecido pela Organização Mundial da Saúde (OMS, 2019) como fenômeno ocupacional, é exatamente isso: o colapso entre o excesso de demanda emocional e a ausência de espaço para processá-la. Segundo o Great Place to Work (2024), 58% dos trabalhadores brasileiros já apresentaram sintomas compatíveis, e entre profissionais de RH esse número chega a 72% (ABRH/ZENKLUB, 2024).

A sociologia do trabalho chama esse esforço silencioso de trabalho emocional (Hochschild, 1983) — a necessidade de modular sentimentos para manter uma imagem “profissional”. A consequência é a alienação afetiva: você continua funcionando, mas já não sente o que faz sentido.

Quando o corpo diz “basta”

O burnout raramente chega de repente. Ele se instala devagar: lapsos de memória, irritabilidade, dor muscular difusa, exaustão sem causa aparente.

No meu caso, o gatilho final foi uma crise hipertensiva que me levou à emergência.

O diagnóstico posterior: fibromialgia, uma síndrome de dor crônica, multifatorial e amplificada pelo estresse. O ano era 2016.

Durante muito tempo, a fibromialgia foi tratada como “dor sem causa”. Hoje sabemos, graças à neurociência e à medicina psicossomática, que ela é uma condição de sensibilização central: o sistema nervoso se torna hiperativo, percebendo estímulos neutros como dolorosos.

Essa hipersensibilidade envolve a hiperativação do eixo hipotálamo-hipófise-adrenal (HHA), o mesmo circuito acionado em situações de estresse prolongado. Quando o cérebro entende que há perigo constante, mantém o corpo em alerta permanente. O cortisol, liberado sem descanso, altera a percepção da dor, a regulação do sono e os níveis de energia (Tieppo, 2021).

A fibromialgia é caracterizada por:

  • Dor musculoesquelética generalizada por mais de 3 meses;
  • Fadiga persistente;
  • Sono não reparador;
  • Distúrbios cognitivos (chamados de “fibrofog”);
  • Hipersensibilidade a ruídos, luzes e cheiros;
  • Sintomas de ansiedade ou depressão associados.

Essas manifestações variam de pessoa para pessoa e são influenciadas por fatores genéticos, neuroendócrinos, emocionais e ambientais.

A Lei nº 14.705/2023 incorporou a fibromialgia e a síndrome da fadiga crônica como condições que exigem atenção integral no SUS, e a Lei nº 15.176/2025 criou o Programa Nacional de Proteção dos Direitos das Pessoas com Fibromialgia, reconhecendo-a, em alguns casos, como deficiência.

Esse reconhecimento é simbólico: ele legitima o que tantos profissionais vivem em silêncio — o corpo que adoece por excesso de entrega.

Da empatia à fusão emocional

Quem trabalha com pessoas, especialmente em áreas de cuidado como RH, saúde ou educação, vive uma fronteira tênue entre empatia e fusão. Ironicamente eu atuo nas três áreas, sabe aquele meme famoso o do Pai do Chris que tem 2 empregos, pois então, eu o supero, pois tenho três.

Voltando para a ciencie a pesquisadora Tania Singer (2014) explica que a empatia sem autorregulação ativa as mesmas áreas cerebrais da dor física. Já a compaixão, ao contrário, ativa circuitos ligados ao prazer social e à resiliência. Ou seja: sentir com o outro é essencial; sentir como o outro pode ser devastador.

Essa diferença é o que chamo de ética da preservação: aprender a cuidar sem se consumir.
A empatia compassiva — que reconhece a dor sem absorvê-la  é uma das competências mais urgentes nas organizações contemporâneas.

Sofrimento ético: quando os valores adoecem

Christophe Dejours (1994, 2015) define o sofrimento ético como a dor de agir contra o próprio valor moral. No RH, isso acontece quando é preciso conduzir um corte injusto, silenciar uma denúncia ou seguir políticas que violam convicções pessoais.

Esse tipo de sofrimento é invisível, mas corrosivo. Ele se manifesta em gastrites, insônias, cinismo emocional. Não aparece no eNPS, mas aparece no corpo.
E o corpo, mais cedo ou mais tarde, cobra.

A cultura do herói cansado

O filósofo Byung-Chul Han (2015) chama de “sociedade do desempenho” o regime em que cada um se autoexplora acreditando estar se realizando.

No RH, isso ganha contornos de heroísmo: “dar conta de tudo”, “ser o suporte de todos”.
A autoexploração vem travestida de propósito.
Mas propósito sem limite é sobrecarga, e cuidado sem reciprocidade é exaustão.

Fibromialgia: da dor à consciência

A fibromialgia me obrigou a olhar para o limite que o burnout já havia anunciado.
Forçou-me a desacelerar, a reformular a relação com o tempo e a ressignificar o verbo cuidar.

Descobri que viver com fibromialgia não é viver em dor constante, é viver em escuta constante.
Escutar o corpo, observar o que o agrava, ajustar o ritmo, e  principalmente  abandonar a culpa de não ser sempre produtiva.

O que ajuda na convivência com a fibromialgia

  1. Sono restaurador: priorizar higiene do sono, evitar estímulos noturnos e criar rituais de relaxamento.
  2. Movimento moderado: exercícios de baixo impacto (caminhadas, hidroginástica, alongamentos) aumentam endorfinas e reduzem dor.
  3. Alimentação anti-inflamatória: reduzir ultraprocessados e priorizar alimentos naturais.
  4. Mindfulness e respiração consciente: reduzem a hiperativação do eixo HHA e melhoram foco.
  5. Psicoterapia: auxilia na regulação emocional e na reorganização de papéis (da performance para o cuidado real).
  6. Tratamento interdisciplinar: reumatologista, fisioterapeuta, psicólogo e, se necessário, psiquiatra.

Essas práticas não eliminam a síndrome, mas transformam a relação com ela.
Hoje entendo a fibromialgia não como castigo, mas como convite à coerência: um corpo que exige da mente o mesmo respeito que a mente exige dos outros.

A nova legislação brasileira reforça essa visão ao reconhecer que pessoas com dor crônica precisam de planos de trabalho adaptados, pausas, flexibilidade e acompanhamento contínuo.
É um recado que vale para todos: a saúde ocupacional começa quando o cuidado volta a incluir quem cuida.

Lições aprendidas: o corpo como mestre

  1. Escuta não é silêncio: o profissional de cuidado também precisa falar.
  2. Resiliência não é resistência infinita: saber parar é sabedoria, não fraqueza.
  3. Cultura saudável exige estrutura real: políticas de escuta, supervisão emocional e limites institucionais.
  4. Autocuidado é política organizacional: não pode depender da boa vontade individual.

Do padecer ao florescer

Depois do burnout e da fibromialgia, aprendi que a cura não é voltar a ser quem eu era — é escolher quem quero ser agora.
O corpo, quando fala, não castiga; ensina.
Ele aponta o caminho do retorno à vida. E a vida, quando finalmente escutada, mostra que cuidar de si é o primeiro gesto de cuidado com o outro.

Referências

ADP RESEARCH INSTITUTE. People at Work 2022: A Global Workforce View. 2022.
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE RECURSOS HUMANOS (ABRH); ZENKLUB. Relatório de Saúde Mental e RH no Brasil 2024. São Paulo: ABRH/ZENKLUB, 2024.
BROWN, Brené. A coragem de ser imperfeito. Rio de Janeiro: Sextante, 2021.
BYUNG-CHUL HAN. A sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2015.
DEJOURS, Christophe. A loucura do trabalho. 5. ed. São Paulo: Cortez, 1994.
DEJOURS, Christophe. O fator humano. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2015.
EDMONDSON, Amy. A organização sem medo. São Paulo: Alta Books, 2019.
FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ (FIOCRUZ). Estudo sobre Afastamentos por Transtornos Mentais Relacionados ao Trabalho no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2024.
GREAT PLACE TO WORK BRASIL. Relatório de Saúde Mental no Trabalho 2024. São Paulo: GPTW, 2024.
HOCHSCHILD, Arlie Russell. The Managed Heart. Berkeley: University of California Press, 1983.
ISMA-BR. Burnout: o impacto do estresse nas organizações. São Paulo, 2023.
LEI Nº 14.705, de 26 de outubro de 2023. Estabelece diretrizes no SUS para fibromialgia e síndrome da fadiga crônica. Brasília: DOU, 2023.
LEI Nº 15.176, de 2025. Institui o Programa Nacional de Proteção dos Direitos das Pessoas com Fibromialgia e Doenças Correlatas. Brasília: Senado Federal, 2025.
SINGER, Tania; KLIMECKI, Olga. “Empathy and compassion.” Current Biology, v. 24, n. 18, R875–R878, 2014.
TIEPPO, Carla. Neurociência e Comportamento Humano. 3. ed. São Paulo: Editora dos Editores, 2021.
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE (OMS). CID-11: Classificação Estatística Internacional de Doenças. Genebra, 2019.

Soraia Pena é psicóloga, com pós-graduações e especializações em Gestão de Pessoas, Liderança, Carreira e Coaching (PUCRS); Neurociência e Performance Humana (IPOG); Psicodinâmica do Trabalho (USP); e Saúde Mental nas Organizações (Hospital Israelita Albert Einstein e UMHCSP).
Atua há mais de 25 anos no Brasil e na América Latina como consultora, professora e palestrante nas áreas de Saúde Mental no Trabalho, Segurança Psicológica, Cultura Organizacional e Desenvolvimento de Lideranças. É fundadora da Evolusana e autora dos livros Mente Sã, Equipe Forte e Cultura Sã, Equipe Forte, que integram ciência, ética e prática na construção de ambientes emocionalmente saudáveis, conscientes e produtivos.

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