Como milhares de nordestinos que migravam para a região sudeste em busca de melhores condições de vida (trabalho, saúde e educação), em 1939 o jovem Francelino deixou a pequena Angical, no Piauí, em direção a Minas Gerais. Em Belo Horizonte, foi professor, advogado, tomou gosto pela política e elegeu-se vereador, deputado federal e senador. Antes de ocupar o cargo de governador nomeado em 1977 pelo então presidente Gal Ernesto Geisel, Francelino assumiu a direção nacional da Arena, partido criado pela ditadura militar para dar sustentação política ao regime.
Apoiador do golpe, em 1976 Francelino Pereira dos Santos cunhou a célebre frase “Que país é esse?”, fruto de reação indignada ao constatar que os críticos da ditadura duvidavam da promessa do Gal Ernesto Geisel, de promover a abertura política e garantir a transição do regime militar para a democracia nos 2 anos seguintes. Na verdade, poucos meses depois o governo fechou o Congresso Nacional, aumentou para 6 anos o mandato dos presidentes militares e as eleições diretas para governadores foram restabelecidas apenas em 1982, com ampla vitória da oposição. Para a presidência da república, somente em 1989 com a eleição do alagoano Collor.
Inspiração
A frase de Francelino permanece atual e ao longo do tempo inspirou chargistas, escritores e poetas como o mineiro Afonso Romano de Sant’Anna (casado com a escritora Marina Colasanti), e músicos como o roqueiro Renato Russo (falecido), da banda Legião Urbana : ambos lançaram poema e música em 1980 e 87, respectivamente, com a frase como título.
Do exílio, no livro o poeta traça de maneira lírica -e crítica- o panorama do Brasil sob a ditadura militar e a sua desolação de não ter um país, de não se sentir um indivíduo livre. Em depoimento gravado há poucos anos, ele disse acreditar que a frase não seria exclusividade do senador Francelino: “Certamente, Machado de Assis e José de Alencar também se perguntaram isso. Acho que até memo Cabral ao atracar na costa brasileira”. Para o poeta mineiro, a frase é intemporal e cada geração a responde à sua maneira: “Uma delas foi o movimento diretas-já em 84. Outra, é o que vivemos hoje”.
O sucesso musical de Renato Russo, “Que país é esse?” faz uma crítica direta à corrupção, desigualdade social, violência urbana, tratamento injusto aos povos indígenas e suas terras, entre outros problemas. Um dos versos diz : “Nas favelas, no Senado. Sujeira pra todo lado. Ninguém respeita a Constituição. Mas todos acreditam no futuro da Nação”. A música é marcada fortemente pelo título como refrão.
Sinal amarelo
Pela intemporalidade da frase atribuída a Francelino há quase meio século, no depoimento o poeta Afonso questionou: “Que país será esse daqui a 50 anos?” Nas duas últimas décadas, o Brasil foi abalado por escândalos de corrupção; uma presidente da república foi impeachada; um ex-presidente, políticos e empresários foram presos por corrupção; um capitão reformado do exército, de extrema direita, homofóbico e negacionista, foi eleito presidente da república, cercou-se de militares e ao longo dos anos flertou com um golpe de estado para manter-se no poder. Investigação federal em curso indica possível aparelhamento de órgãos de Estado das áreas policial e inteligência (PF e ABIN) em seu governo: objetivo seria filtrar investigações que chegassem à família suspeita de envolvimento em malfeitos, além de bisbilhotar atividades e vida pessoal de adversários políticos do ex-presidente.
No Legislativo, representantes de diferentes grupos de interesse -do campo às igrejas evangélicas, passando pelo setor de armas- uniram-se em um poderoso bloco partidário que avança sobre funções do Executivo, como a execução orçamentária e a destinação de verbas bilionárias aos parlamentares para obras em seus estados. Sem a necessária transparência e fiscalização, são comuns as denúncias de desvios e corrupção na aplicação desses recursos. Refém desse grupo no Legislativo, o governo é forçado a negociar aprovação de projetos de interesse nacional, cedendo verbas, ministérios e cargos importantes na administração pública.
No judiciário, após aprovar a operação de combate à corrupção, as provas coletadas, delações premiadas, condenações e prisões de políticos e empresários, o STF revisou suas decisões e anulou quase tudo, responsabilizando o juíz e o procurador que comandaram o processo. Eleitos em 2022, o procurador teve cassado o mandato de deputado federal; nos próximos dias o juíz deve perder o de senador. O ex-presidente Lula, que estava preso, teve a condenação anulada, foi libertado e elegeu-se presidente da república pela terceira vez em duas décadas. Abriram-se as grades das celas onde executivos e políticos cumpriam penas.
Em decisão monocrática no STF, o ministro Dias Toffoli -sem notório saber jurídico e reputação ilibada, exigidos pela Constituição- anulou acordos de delação, depoimentos e confissões firmados com empresas e executivos corruptos, concluindo que a prisão do ex-presidente Lula havia sido o “maior erro judiciário do país “. Uma decisão negacionista e revisionista com potencial de causar danos irreparáveis aos cofres públicos e contribuintes brasileiros. Em nome do interesse nacional, essa decisão isolada de Toffoli já deveria ter sido pautada pelo STF, discutida, votada e revisada pelo colegiado de ministros.
No final do ano passado o mesmo Toffoli anulou acordo firmado entre o Ministério Público e o grupo J&F, que deveria pagar multa de R$10,3 bilhões ao Tesouro Nacional para livrar-se das ações penais por corrupção. Acredita quem quiser: o escritório que defende a empresa e entrou com a ação no STF tem entre seus advogados a mulher do ministro. Os honorários advocatícios pelo sucesso jurídico giram em torno de meio bilhão de reais.
Vem mais por aí: tudo parece indicar que brevemente serão protocoladas no STF novas ações de empresas, executivos e políticos condenados e presos pela Lava Jato, exigindo devolução do dinheiro sujo, anulação de acordos financeiros, multas, indenizações milionárias, reparação por danos morais, etc.etc. Afinal, até aqui prevalece a decisão de Toffoli: não existiu corrupção no Brasil nos últimos anos, foi tudo um engano colossal. Resolvida essa parte, a conta a pagar tem endereço certo: a União, com recursos dos contribuintes. Para além da antiga frase do migrante piauiense, fica a indagação recente do poeta mineiro: “Que país será esse daqui a 50 anos?”
Aloísio, sua análise, extremamente certa, me fez lembrar do velho jornalista Lamartine, amigo comum e d
e longa data, parodiando De Gaulle: Este é um país de pândegos!!!