A ampliação da faixa de isenção do Imposto de Renda para rendas de até R$ 5 mil mensais representa um avanço que não pode ser subestimado. Depois de anos de paralisia, a decisão coloca o Estado brasileiro diante de seu dever constitucional mais elementar: fazer com que o sistema tributário reflita, ainda que minimamente, a capacidade contributiva de cada cidadão, conforme determina o artigo 145, §1º da Constituição. Em um país marcado por desigualdades profundas, a simples atualização da tabela, tantas vezes negligenciada, já constitui um ato civilizatório.
Mas o mérito da medida não deveria impedir uma análise mais ampla — e mais direta — sobre o sistema tributário brasileiro. Corrigir a faixa de isenção do IRPF é um gesto relevante; contudo, está longe de representar a reforma estrutural que o país precisa. Trata-se de uma correção, não de uma reconstrução.
O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva acertou ao enfrentar o problema. O ministro Fernando Haddad, com condução técnica e habilidade política, foi peça central na elaboração de uma proposta que combina responsabilidade fiscal com sensibilidade social. O vice-presidente Geraldo Alckmin, com sua capacidade de articulação e seu reconhecido perfil conciliador, ajudou a consolidar pontes com setores produtivos e lideranças do Congresso.
Mas talvez o dado político mais relevante tenha sido outro: a sintonia entre Câmara e Senado, que votaram o texto de maneira coordenada, sem o travamento crônico que costuma marcar debates fiscais no país.
A convergência inédita entre Executivo e Legislativo é um ponto positivo e merece ser destacada. Num Brasil de polarizações, construir consenso em torno de uma política tributária que beneficia a classe média e diminui desigualdades é um fato raro — e digno de registro histórico.
No entanto, o Brasil continua operando sob uma lógica tributária que produz injustiça social em série. A ampliação da isenção não altera o eixo estrutural que juristas como Ives Gandra da Silva Martins e Kiyoshi Harada denunciam há décadas: a regressividade do sistema.
Tributamos demasiadamente o consumo, oneramos quem ganha menos, punimos o trabalhador assalariado — justamente aquele que paga mais e recebe menos.
O país possui uma carga tributária comparável à de nações desenvolvidas, mas oferece serviços públicos incompatíveis com essa arrecadação — uma disparidade que afronta diretamente o princípio constitucional da eficiência (art. 37), tantas vezes ignorado na prática. Nosso Estado cobra muito e devolve pouco.
A máquina pública permanece cara, fragmentada, redundante, com baixa capacidade de resposta e baixa qualidade de prestação de serviços essenciais.
A nova isenção devolve dignidade a milhões de contribuintes, mas não resolve o dilema estrutural: o Brasil ainda tributa errado, de forma complexa, opaca e desigual. Não basta aliviar; é preciso reformar. Não basta corrigir faixas; é preciso repensar o pacto fiscal.
De modo mais direto: o Estado brasileiro continua longe de cumprir plenamente seu dever republicano.
Ainda assim, seria injusto ignorar o avanço. A atualização da tabela não é gesto simbólico; é gesto real. Significa mais recursos disponíveis na renda de quem trabalha, mais consumo, mais circulação econômica, mais capacidade de pagamento das famílias. Significa aliviar a classe média, tantas vezes esquecida, e corrigir parte da distorção acumulada ao longo de sucessivos governos.
A decisão não deve ser romantizada — mas deve ser reconhecida. O Estado brasileiro precisa de muito mais, mas acertou ao fazer o que há anos deveria ter sido feito. O avanço é limitado, sim, mas é concreto.
E, em política fiscal, avanços concretos não são frequentes.
A isenção de R$ 5 mil não encerra o debate tributário. Na verdade, ela o inaugura sob nova perspectiva: a de que é possível — e necessário — construir uma agenda tributária que una responsabilidade fiscal, justiça social e eficiência administrativa.
Se este governo conseguiu promover um consenso em torno da tabela do IR, talvez seja possível ir além.
O país ainda precisa de coragem para enfrentar o todo, não apenas a parte. Mas por ora, reconhecer o acerto é também uma forma de exigir que ele seja apenas o começo.
Walter Ciglioni
Jornalista e Presidente do Projeto Educacional Minha Escola e o Canal é Membro da OAB-SP – Comissões de Direito Constitucional, Tributário, Política Criminal e Penitenciária, e Meio Ambiente e foi candidato ao Governo do Estado de São Paulo.










