Sou da época em que os amigos e conhecidos se tratavam por apelidos, muitos deles referentes à raça ou cor. Assim, era comum que os amigos fossem tratados por negão, turco, bode, branquela, japa, alemão e outros apelidos do gênero. E ninguém se ofendia e, ainda, identificavam-se com esses apelidos.
De um tempo para cá, parece que as pessoas mais jovens, por conta de uma propaganda massiva de que tudo é racismo, ofensa ou bullying, tornaram-se tão sensíveis, ao ponto de serem chamadas de geração de cristal, talvez pela maior difusão das ideias por meio das redes sociais ou por ser atualmente tudo mais fácil do que antigamente; pelo menos é essa a minha impressão.
Mas qual o sentido e o porquê dessas afirmações?
No direito, nem toda frase ou palavra é uma infração penal ou civil. Tudo depende do contexto de como foi dita e da intenção do agente, o que chamamos de dolo.
Dolo é a vontade livre e consciente de praticar a conduta e de produzir um resultado, que pode ser naturalístico (existe no mundo exterior) ou jurídico (presumido pelo direito), normalmente a violação a um bem jurídico, como, por exemplo, crimes de perigo abstrato, em que o perigo de dano é presumido pela lei de forma absoluta, tais como o porte ilegal de arma de fogo e de drogas para o tráfico.
Não vou entrar na questão do dolo eventual, que é aquele em que o sujeito assume o risco de produzir o resultado e o tolera, que não é o caso nesta questão.
Destarte, quando se diz algo para alguém, só ocorrerá crime contra a honra se houver a deliberada intenção de ofender, no caso de injúria, a honra subjetiva, que é a dignidade ou o decoro, ou seja, o que a pessoa pensa dela própria tomando por base seus atributos físicos, intelectuais, morais e outros, concernentes a toda pessoa humana.
Com efeito, o ânimo de criticar, de defender, de brincar e de narrar um fato, sem a deliberada intenção de atingir a honra alheia, não constitui crime.
No crime de racismo não é diferente. É exigida a especial intenção de atingir a coletividade ou o grupo respectivo em razão de uma colocação ou mera palavra.
Recentemente, em 11 de janeiro de 2023, foi publicada a Lei nº 14.532, de 11.01.2023, para tipificar como racismo a injúria cometida em razão de raça, cor, etnia ou procedência nacional, o que até então era previsto como crime de injúria qualificada pelo preconceito no Código Penal no § 3º do artigo 140. Diz o novo tipo penal, agora previsto na Lei nº 7.716, de 05.01.1989, que trata dos crimes de racismo: “Art. 2º-A Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro, em razão de raça, cor, etnia ou procedência nacional. Pena: reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos e multa. Parágrafo único. A pena é aumentada de metade se o crime for cometido mediante concurso de 2 (duas) ou mais pessoas.”
É comum confundir o crime de racismo com o de injúria racial, punido atualmente com pena absolutamente desproporcional, superior à maioria das condutas criminosas tipificadas na Lei nº 7.716/1989.
Uma das normas penais que pune uma das formas de racismo é a prevista no artigo 20 da aludida lei, que dispõe: “Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Pena: reclusão de 1 (um) a 3 (três) anos e multa.”
Na injúria racial, atualmente prevista como racismo com todas as suas consequências legais, o autor ofende a vítima usando elementos referentes à cor, raça, etnia ou procedência nacional. A ofensa atinge aquela pessoa especificamente e é contra ela endereçada de forma individual.
Já no racismo, é ofendida toda a raça (branca, negra, amarela, índia e parda) e a ação é voltada contra o coletivo dela, e não apenas ao ofendido individualmente considerado.
Interessante, aliás, que a injúria racial, que atinge pessoa determinada, tem a pena muito superior ao delito previsto no artigo 20, que alcança o coletivo de toda raça, o que me parece um contrassenso, posto que inegavelmente esta última conduta é mais grave por atingir bem jurídico coletivo, mais importante do que o individual.
Enfim, nem tudo é racismo ou injúria racial e toda colocação, frase ou palavra deve ser analisada dentro do contexto e de acordo com o dolo do autor; do contrário, chegaremos a um ponto em que as pessoas estarão tão tolhidas de se manifestarem, brincarem, comemorarem, extravasarem sua alegria ou tristeza, decepção ou orgulho, e outros sentimentos típicos da natureza humana, que o mundo, de tão cheio do politicamente correto, será preferível se calar e só falar o estritamente necessário para não ser mal interpretado e virar réu ou investigado pela prática de crime de injúria, racismo, homofobia, assédio sexual ou moral e outros do gênero.
Autor: César Dario Mariano da Silva – Procurador de Justiça – MPSP. Mestre em Direito das Relações Sociais – PUC/SP. Especialista em Direito Penal – ESMP/SP. Professor e palestrante. Autor de diversas obras jurídicas, dentre elas: Comentários à Lei de Execução Penal, Manual de Direito Penal, Lei de Drogas Comentada, Estatuto do Desarmamento, Provas Ilícitas e Tutela Penal da Intimidade, publicadas pela Editora Juruá.