Para Rubens Figueiredo, o afeto pelos animais é legítimo, mas quando se torna argumento para invadir todos os espaços sociais, sem regras ou bom senso, temos um problema
Há muito tempo os pets — especialmente os cães — deixaram de ser apenas animais de estimação. Viraram filhos emocionais, terapeutas que entendem nossas emoções, motivo de briga entre vizinhos e, não raro, substitutos de relações humanas que estão mais para lá do que para cá. Hoje em dia, cão não late: se expressa. Não suja: demarca território. E não morde: revela descontentamento.
Tenho um amigo que dorme com um dog do tamanho de um filhote de búfalo na cama. Quem tem um cachorro em casa (como eu tenho) sabe que o amor deles é “incondicional” — desde que você os alimente na hora certa, ache seus latidos dignos de Tchaikovski, passeie religiosamente quando ele pede e exclua o olfato do seu conjunto de sentidos. Mas aquela abanada de rabo que expressa alegria quando nos vê…
O problema é que, junto com esse afeto merecido pelo bem que eles nos trazem, nasceu também uma nova norma social: achar fofo o cachorro dos outros é uma obrigação pública. Não se mostrar apaixonado pelos animais alheios o coloca na condição de um ser desprezível. Reclamar, então, é expressão de uma insensibilidade incompatível com o processo civilizatório.
Outro dia, por exemplo, minha cadela Gaia quase me matou de susto dentro do carro. Estávamos parados no sinal, clima de paz e ouvindo uma música suave de Marisa Monte. Do nada, a cachorra solta latidos parecidos com os da abertura de um show do Sepultura. Meus batimentos cardíacos subiram para 450, quase precisei de um desfibrilador. Quando recuperei a consciência, minha mulher, incomodada com a minha reação, olhou para o banco de trás e disse para o animal: “Papito está nervoso!”.
É isso. Os cães gritam, pulam, rosnam, latem no volume de um trio elétrico — e os donos respondem como se o problema fosse do entorno. A mania mais nova é dar nome de gente aos representantes caninos. Você está no restaurante, o cachorro tenta decepar a perna do garçom, você vira para olhar e o tutor apenas diz: “assim não pode, né, Bernardo?”. Como se um sermão doce, em voz de ninar, fosse resolver o instinto animal de atacar um ser que passa no corredor de uma churrascaria com uma belíssima peça de picanha no espeto.
E quando os donos decidem, por livre e espontânea irresponsabilidade, que seus cães devem “fazer amizade” com outros? A chance de dar certo é próxima do zero. E, muitas vezes, esse “não dar certo” envolve dentes afiados, mandíbulas poderosas, gritos e ferimentos. No fim, o tutor(a) diz com ar compreensivo(a): “Ele só estranha no começo”. O começo inclui o estraçalhamento do outro cão, da guia e, eventualmente, do imprevidente dono do animal atacado.
Mas o auge da loucura é quando acontece alguma tragédia e o bicho, que já tinha histórico de ataques e o instinto que Deus lhe deu (do qual não tem culpa), acaba devorando o bracinho de uma criança, o joelho de um velhinho ou a roda de uma bicicleta. Aí o dono, comovido com a própria criatura, faz um post no Instagram dizendo: “Thor é um ser de luz. Estava apenas reagindo a uma energia negativa dos recalcados”.
É claro que o afeto pelos animais é legítimo. Mas quando ele se torna argumento para invadir todos os espaços sociais — padarias, restaurantes, consultórios, elevadores, aeroportos, parques — sem regras ou bom senso, temos um problema. Cidade não é a extensão de um canil, e civilidade, por definição, inclui também respeitar quem não compartilha com o mesmo entusiasmo da onipresença do nosso amável ser de quatro patas.










