O aborto sempre será tema de debate em qualquer lugar do mundo. No Brasil não é diferente. Há questões políticas, socioeconômicas, religiosas e outras que trazem uma discussão acalorada, e muitas vezes enviesada. O cerne da recente polêmica veio por causa da tramitação em
regime de urgência do Projeto de Lei 1.904/2024.
Por meio dele, meninas e mulheres que fizerem o procedimento após 22 semanas de gestação poderão pegar penas de seis a 20 anos de reclusão, inclusive quando vítimas de estupro, com uma punição maior do que a prevista a quem comete crime de estupro de vulnerável (oito a 15
anos de reclusão).
Hoje, no Brasil o aborto é permitido apenas em casos de gravidez ocasionada por estupro, se a gravidez representa risco à vida da mulher e em caso de anencefalia do feto. A legislação brasileira não prevê um limite máximo para interromper a gravidez de forma legal. Neste caso, o aborto é proibido, com penas que variam de 1 a 3 anos de prisão. Mas, nas situações mencionadas é autorizada em qualquer momento sem prejuízos para a mulher.
Munidos dessas informações, nos vêm a seguinte pergunta: quem hoje cumpre pena por prática de aborto no país com tamanha exatidão e agilidade? Alguém já viu uma mulher ser presa por que praticou aborto? Alguém já viu uma auxiliar de enfermagem sofrer algum tipo de pena pelo
mesmo crime? Ou, você já viu uma pessoa ser punida por que indicou um médico malandro que interrompeu a gravidez de alguma gestante? E esse mesmo médico malandro, que ganha dinheiro com a desgraça alheia? Quem já botou ele na cadeia?
Para acrescentar mais tempero a essa salada, sabemos que cerca de 800 mil mulheres praticam abortos anualmente no Brasil, sendo que, destas, 200 mil recorrem ao SUS para tratar as sequelas de procedimentos malfeitos.
Para a Organização Mundial da Saúde (OMS), a situação pode ser ainda mais alarmante: o número de abortos deve atingir um milhão de mulheres. Então, nos vêm a pergunta que não quer calar: supondo que esse número enorme de mulheres se enquadre nas questões que as livrariam das penas de prisão, teríamos uma verdadeira epidemia de estupros, gravidezes de risco e anencefalias de feto, pois só dessa maneira elas estariam em condição legal perante a justiça?
De outro modo, por que não temos hoje no Brasil o cumprimento de penas que levem essas mulheres para trás das grades? Seja por um, dois ou três anos, teríamos como demonstrar, na prática, que as leis brasileiras funcionam.
Por outro lado, no entanto, o Projeto de Lei 1.904/2024 surge apenas para, novamente, o país produzir propaganda enganosa de que somos uma nação voltada à preservação da vida de bebês, mas que não cumprimos sequer as leis que já existem para punir, verdadeiramente, aqueles e aquelas que realizam abortos como se trocassem de calça. E com uma facilidade talvez jamais vista em qualquer outro lugar do mundo.
Renato Albuquerque é jornalista e radialista