Nem sempre as intenções na busca de uma solução diante de um problema devem se esgotar na primeira tentativa. Se isto vale para problemas cotidianos, imaginem para questões mais complexas que envolvem interesses internacionais de longo alcance.
A Venezuela é o exemplo acabado de como um país pode se tornar o eixo da disputa geopolítica mundial simplesmente por querer implantar um modelo de Estado que foge aos padrões do ocidente coletivo. Queira-se ou não, goste-se ou não, a soberania de um país é cláusula pétrea e deve ser observada pelas demais nações.
Mas, o mundo não funciona assim. A soberania que vale para um não vale, necessariamente, para outro, em especial se falamos de um país estratégico na América Latina que possui a maior reserva comprovada de petróleo do hemisfério ocidental e que durante décadas foi controlado politicamente pelos interesses das grandes corporações norte-americanas.
Dito isto, o fato é que a Venezuela passa por uma prova de fogo da sua chamada Revolução Bolivariana, iniciada em 1998 com a vitória do então capitão do Exército, Hugo Chávez, e que foi modificando a estrutura do Estado na tentativa de melhorar as condições de vida da população mais pobre do país.
Fortemente alavancada pelo petróleo, sua principal fonte de riqueza, as políticas públicas tiveram na estatal PDVSA a principal fiadora econômica do processo de transformação social.
Paralelamente, uma permanente reformulação na hierarquia militar e a completa reestruturação de suas funções resultaram na Força Armada Nacional Bolivariana (FANB).
Do ponto de vista das massas, o Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV) deu respostas significativas de organização e mobilização, o que gerou dezenas de milhares de militantes em todo o país.
Apoiado nesse tripé (petróleo, forças armadas e povo organizado), Hugo Chávez conseguiu enraizar uma proposta revolucionária que, apesar de não seguir padrões tradicionais, alimentou a esperança dos venezuelanos em um novo tempo de prosperidade e bem-estar social.
Seguindo os modelos teóricos tradicionais ou não, a revolução chavista incomodou quem, internamente, sempre havia desfrutado das riquezas do país. Falamos aqui das elites econômicas que sempre preferiram Miami a Caracas. Externamente, a revolução bolivariana despertou a desconfiança dos Estados Unidos que não hesitaram em momento algum em buscar remover Hugo Chávez do poder, sendo que a primeira tentativa aconteceu com o golpe frustrado em 2002.
A história, no entanto, sempre surpreende e quem dirige um país precisa estar atento aos lances imprevistos que surgem. A morte precoce de Hugo Chávez provocou uma reviravolta desafiadora quando se pensa num processo fortemente centrado num líder popular e carismático. A escolha de Nicolás Maduro como sucessor de Chávez foi estritamente pessoal, respaldada num consenso pouco claro na cúpula do partido.
Carisma e liderança são dois atributos necessários para qualquer governante e, especialmente, quando se trata de um processo político altamente complexo e que chama a atenção do mundo. Nesse sentido, Maduro teve que ir construindo aos poucos o reconhecimento do povo venezuelano e já numa situação interna que somente se agravou pela imposição de sanções econômicas dos Estados Unidos e da Europa e pela oscilação da principal riqueza do país, que depende da flutuação de preços no mercado internacional.
Com o comércio fechado, contas congeladas e o acosso permanente dos Estados Unidos, a produção de petróleo foi decaindo causando grande impacto às políticas públicas que haviam sido o combustível da popularidade de Chávez. Como na política não existe vácuo, a oposição se empoderou gravitando, principalmente, na emblemática saída de oito milhões de venezuelanos do país, tendo como causa direta a pobreza crescente.
É nesse cenário que surge uma força opositora vinculada e dependente financeiramente dos interesses de Washington e com posições de extrema-direita, o que torna o processo político altamente polarizado e de difícil solução. Não foram poucas as iniciativas golpistas da oposição para derrubar Maduro, sendo que a mais hilária delas se deu com a autoproclamação, em 2019, de um deputado inexpressivo como presidente do país, Juan Guaidó.
Ao contrário, porém, do que podemos pensar, essa extrema-direita, diante das dificuldades econômicas do país, foi ganhando força e conquistou razoável apoio popular, ainda que não tenha conseguido colocar o governo em xeque-mate.
A oportunidade veio com o acordo de Barbados, em 2023, que antecipou a eleição de dezembro para 28 de julho deste ano. Nunca se saberá se Maduro pensou em todas as alternativas que poderiam surgir e que haveria de enfrentar ao fazer esse movimento. Mas, sem dúvida alguma, o acordo deu à oposição a manchete pronta do dia seguinte ao processo eleitoral: se ganhasse, estava tudo certo; se perdesse, denunciaria fraude e iniciaria um novo ciclo de desestabilização com apoio internacional.
Foi exatamente o que aconteceu. Mas, se por um lado, o plano da extrema-direita venezuelana estava claro, o problema foi amplificado pela postura pouco transparente no anúncio da vitória de Maduro pelo Conselho Nacional Eleitoral, que considerou suficiente a apuração parcial das urnas poucas horas após o encerramento da votação sem que isto tivesse a visibilidade necessária. A justificativa de “ataques cibernéticos em massa” tampouco ficou esclarecida e assim a oposição se sentiu à vontade para colocar seu plano em marcha.
A senha da fraude foi dada por Maria Corina Machado, a verdadeira líder da extrema-direita, que pediu aos seus apoiadores se lançarem às ruas de forma violenta, o que teve como resposta a ação repressiva das forças policiais causando mortes, feridos, prisões e danos ao patrimônio público. Cenário ideal para a mobilização contra o governo gerando as imagens necessárias na mídia internacional.
Somada à resposta de contra-ataque à violência opositora, Maduro pediu leis mais contundentes ao Congresso contra a tentativa de desestabilização do país. Isto significa “mano dura” internamente, mas externamente pode trazer ainda mais dificuldades para a normalização da situação.
A ação proposta por Brasil, Colômbia e México é uma alternativa diplomática que pode contribuir para evitar o pior: o isolamento ainda maior da Venezuela. Aceitar a intermediação é mais prudente do que pedir a retirada de embaixadores de países do continente que, ainda com posições políticas divergentes, constituem parte do bloco latino-americano que às duras penas vem tentando se reconstruir.
A apresentação das atas eleitorais não é um procedimento comum quando se respeita a soberania de um país. Mas, as circunstâncias pedem movimentos “fora da caixinha” com o
objetivo de assegurar credibilidade à vitória de Nicolás Maduro. Ninguém, principalmente no campo da esquerda, precisa acreditar que a oposição venezuelana está disposta a dialogar com o governo e aceitar o resultado. A questão não é essa. A extrema-direita seguirá atuando contra o regime, em qualquer situação. Mas, colocá-la na defensiva para além da repressão aos atos violentos é fundamental e isto se fará com a aceitação da proposta do trio de países latino-americanos. A busca de uma solução pacífica não pode se esgotar.
Marco Piva é jornalista e apresentador do programa Brasil Latino, da Rádio USP. Membro do Centro Latino-americano de Cultura e Comunicação da Universidade de São Paulo.