Já está na fase de julgamento as ações penais movidas contra diversas pessoas que participaram, ou ao menos estavam no local, dos atos no fatídico dia 08 de janeiro de 2023.
Não vou ingressar no mérito de ser, ou não, o STF o foro competente para julgar pessoas sem prerrogativa de foro, que, de acordo com nosso sistema constitucional, deveriam ser julgadas normalmente por um juiz de primeiro grau, com direito a diversos recursos, o que já não ocorre quando se é julgado ordinariamente na última instância. E nem se as penas foram proporcionais às condutas praticadas e se houve a necessária individualização das condutas nas denúncias ofertadas pelo Ministério Público Federal, a fim de que fosse preservada a ampla defesa e o devido processo legal, princípios fundamentais de nossa Carta Constitucional.
A pergunta que se faz é: aqueles atos teriam o potencial de abolir o estado democrático de direito ou de depor um governo legitimamente eleito, notadamente por terem sido realizados com os prédios vazios, no final de semana e sem o emprego de armas?
Se a resposta for negativa, não poderá haver nenhum desses delitos, mas outros como dano ao patrimônio público ou histórico, desobediência, ameaça, lesões corporais ou algum outro específico e muito menos grave.
Vou tentar da forma mais clara possível explicar cada um desses delitos e aquele que poderia ter sido praticado pelas pessoas que se encontravam no acampamento defronte ao quartel general do Exército.
A Lei nº 14.197, de 1º de setembro de 2021, que revogou a Lei de Segurança Nacional, cuida de delitos que atentam contra o Estado Democrático de Direito em seu sentido mais amplo.
A nova lei, que inclui o Título XII no Código Penal, foi publicada no dia 2 de setembro de 2021, e contou com diversos vetos presidenciais.
Uma das principais alterações, muito bem-vinda, aliás, é que os delitos de opinião, aqueles cometidos por escritos ou palavras, deixam de ser tipificados na Lei de Segurança Nacional e passam a ser crimes comuns, descritos no Código Penal, passíveis de transação penal, de competência do Juizado Especial Criminal, com exceção da calúnia agravada, e o mesmo delito ou a difamação, quando cometidos ou divulgados em quaisquer modalidades de redes sociais da rede mundial de computadores (Internet), cuja pena é triplicada.
Inclusive, incluiu parágrafo único no artigo 286 do Código Penal, que traz dispositivo que era previsto como crime contra a segurança nacional pela Lei nº 7.170/1983 (art. 23), expressamente revogado.
De acordo com o novo dispositivo, será punido com a mesma pena da figura fundamental (art. 286 do CP) aquele que incitar, publicamente, à animosidade entre as Forças Armadas, ou entre estas e os Poderes da República (Executivo, Legislativo e Judiciário), as instituições civis ou a sociedade.
Observo que a incitação deve se dar publicamente, isto é, ser percebida pelos sentidos de um número indeterminado de pessoas e ter potencialidade para alcançar o resultado almejado, que é a animosidade entre as Forças Armadas, ou entre estas e os Poderes da República, as instituições ou a sociedade.
Cuida-se de crime de suma gravidade, que pode colocar em risco o Estado Democrático de Direito, e merecia apenamento mais rigoroso, como o que era previsto na Lei de Segurança Nacional.
Punir com pena ridícula de três a seis meses de detenção, ou multa, decerto não tutela como deveria a paz pública e o estado democrático de direito.
Anoto, por oportuno, que não haverá este delito quando se pede a intervenção das Forças Armadas para que ela cumpra suas funções previstas na Constituição Federal. O que a lei veda e pune é insuflar as Forças Armadas para que ajam contrariamente ao direito. Seria ilógico e insensato pretender punir aquele que apenas quer que direitos e garantias constitucionais sejam observados.
Com efeito, pedir intervenção federal, decretação de estado de defesa, de sítio, impeachment de autoridades, aplicação do art. 142 da Carta Magna (que na realidade traz apenas as funções das Forças Armadas), não se amolda ao tipo penal de crime, visto serem pedidos perfeitamente possíveis, já que previstos na Constituição Federal, malgrado não se fazerem presentes os requisitos necessários para que as medidas sejam adotadas, o que não é de conhecimento comum da população.
O que a norma proíbe e pune são manifestações que incitem as Forças Armadas a adotarem medidas ilegais, não previstas no direito objetivo, como o fechamento do Congresso Nacional ou do Supremo Tribunal Federal, prisão de autoridades de forma arbitrária, golpe de estado e outras condutas ilegais semelhantes.
O crime é formal e de perigo abstrato e, por isso, não há necessidade de que efetivamente ocorra a adoção de medidas ilegais pelas Forças Armadas. No entanto, dada a peculiaridade da norma legal, a conduta deve ao menos ter o potencial de efetivamente levar as Forças Armadas a adotarem medidas contrárias ao direito.
Saliento que, com as penas cominadas, o delito é de pequeno potencial ofensivo, sendo cabível acordo de não persecução penal, transação penal, suspensão condicional do processo e, mesmo no caso de condenação, muito dificilmente ensejará pena de prisão, posto que, presentes os requisitos legais (arts. 44 e 77 do CP), faz-se possível a substituição da pena prisional por restritiva de direitos e a suspensão condicional da pena (sursis).
Por esses mesmos motivos, mormente pela quantidade e natureza das penas cominadas, desproporcional a decretação da prisão preventiva, exceção feita a casos excepcionais em que, havendo prova da materialidade e indícios suficientes de autoria, o autor for reincidente em crime doloso ou não identificado (art. 313 do CPP) e se façam presentes ao menos uma das circunstâncias específicas da prisão preventiva previstas no artigo 312 do Código de Processo Penal (para a garantia da ordem pública, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal), e que não sejam adequadas as medidas cautelares diversas da prisão (art. 319 do CPP).
Os novos tipos penais que tutelam o estado democrático de direito constituem o Título XII, do Código Penal, que contêm cinco capítulos: I – Dos crimes contra a soberania nacional; II – Dos crimes contra as instituições democráticas; III – Dos crimes contra o funcionamento das instituições; IV – Dos crimes contra o funcionamento dos serviços essenciais e VI – Disposições comuns, anotando que o capítulo V, que cuidava dos crimes contra o exercício da cidadania, foi vetado.
A novatio legislação não mais contempla expressamente quais são os bens jurídicos protegidos como fazia a lei revogada. No entanto, pode servir de parâmetro na interpretação de alguns de seus dispositivos.
Com efeito, da análise dos tipos penais, percebe-se que os bens jurídicos tutelados são a integridade territorial e a soberania nacional, o regime representativo e democrático, a Federação e o Estado Democrático de Direito, a segurança nacional e a lisura do processo eleitoral. Assim, a depender de qual dos delitos, a conduta praticada deverá ferir o bem jurídico protegido pela norma (crime de dano) ou colocá-lo em risco (crime de perigo). Dessa forma, não será uma conduta qualquer, mas uma bem grave, a fim de não se banalizar o emprego desses tipos penais, que sempre serão excepcionais.
Lembro que em países totalitários invariavelmente há uma norma penal aberta para alcançar toda e qualquer manifestação contra o governo e, que no seu entender, coloque-o em risco. A título de exemplo, o art. 6º do Código Penal Soviético, outorgado após a revolução (1926), trazia norma que permitia a punição de qualquer conduta que fosse considerada perigosa à estrutura do Estado soviético.
Isso implicava que o juiz poderia punir quem, em sua opinião, pudesse colocar em risco a ordem política da época. Essas fórmulas de elaborar normas penais extremamente abertas foram empregadas do mesmo modo nos códigos criminais do Brasil colônia, como as Ordenações Filipinas, usadas para condenar e executar Tiradentes e inúmeras outras pessoas que ousassem atentar contra o soberano.
Por conta desse perigo de perseguição estatal, vige nos países democráticos o princípio da reserva legal, do qual já falei em vários dos meus artigos, em especial em um publicado na Conjur em 01.11.2021, com o título: “Crime de homofobia: nascimento, morte e velório do princípio da reserva legal”. Por esse princípio, a norma penal deve ser taxativa e sua interpretação restritiva, não admitindo a analogia em desfavor do acusado. A conduta deve se amoldar perfeitamente à norma penal, não sendo permitidas interpretações muito abertas a ponto de nela caber diversas condutas ao gosto do freguês.
Não pretendo analisar todos os dispositivos, o que faço em meus livros, mas cabe-me trazer algumas ponderações sobre tipos penais que foram empregados pelo STF no famigerado inquérito judicial das fake news e nos dele derivados.
Como dito, não há mais nenhum crime de opinião. Os crimes contra a honra dos chefes dos Poderes e de induzimento à prática de algum delito previsto na lei revogada (art. 26), passam a ser tipificados no Código Penal, quais sejam, calúnia (art. 138), difamação (art. 139) e injúria (art. 140), que não era tipificada na Lei de Segurança Nacional. Já o de incitação ao crime, que era tipificado no artigo 23, está previsto no artigo 286 do Código Penal, com pena amena, de três a seis meses de detenção, ou multa.
Em alguns casos, como os acima referidos, haverá a chamada continuidade normativa-típica, isto é, os crimes deixaram de ser previstos em uma lei, mas passam a ser tipificados em outra lei, não ocorrendo abolitio criminis, mas, como já disse, com pena bem inferior, que deve ser aplicada para o passado e futuro por constituir lei penal mais benéfica, retroagindo em favor do réu.
Saliento que em muitos dispositivos desta lei há dois elementos objetivos do tipo, que necessitam de interpretação de acordo com os bens jurídicos tutelados, como ocorre com qualquer norma penal. São a violência e a grave ameaça.
A violência nada mais é do que o desenvolvimento da força física para vencer resistência de alguém ou lhe causar alguma espécie de dano.
Em vários tipos penais existentes em nosso ordenamento jurídico, a violência surge como elementar ou circunstância do delito.
Não se exige que a violência seja irresistível, bastando que seja idônea a produzir o resultado querido pelo agente.
Em regra, o emprego da violência fará com que o agente responda por ela, quando advierem lesões corporais.
A ameaça, como ocorre com a violência, é integrante de vários tipos penais, funcionando ora como elementar, ora como circunstância, que agravará a pena.
Ela poderá configurar crime em si mesmo (art. 147, do CP), mas, em regra, é modo de execução de um delito.
A ameaça consiste na revelação à vítima de lhe causar um mal injusto e grave, atual ou futuro, que só o agente terá como evitar. Essa promessa de mal pode ser da produção de dano ou de perigo, pouco importando qual deles seja prenunciado pelo agente.
Excepcionalmente, a violência contra a coisa poderá constituir grave ameaça, notadamente quando alcança bens públicos de suma importância ou valiosos. É o caso de depredação de prédios públicos vitais para o Estado ou mesmo estações ou torres de distribuição de energia.
Um dos tipos em que a violência ou a grave ameaça se fazem presentes é o artigo 359-L, que diz: “Tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais: Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, além da pena correspondente à violência”.
O novo tipo penal é uma junção dos artigos 17 e 18 da revogada Lei de Segurança Nacional, que dispunham:
“Art. 17 – Tentar mudar, com emprego de violência ou grave ameaça, a ordem, o regime vigente ou o Estado de Direito. Pena: reclusão, de 3 a 15 anos. Parágrafo único. Se do fato resulta lesão corporal grave, a pena aumenta-se até a metade; se resulta morte, aumenta-se até o dobro.
Art. 18 – Tentar impedir, com emprego de violência ou grave ameaça, o livre exercício de qualquer dos Poderes da União ou dos Estados. Pena: reclusão, de 2 a 6 anos”.
A atual norma, que tornou o tipo penal mais fechado, foi parcialmente mantida pelo instituto da continuidade normativa-típica, mas não em sua integralidade, como explicarei.
O verbo do novo tipo penal é tentar, isto é, realizar a conduta para que consiga a abolição do Estado Democrático de Direito, mesmo que não o consiga. A norma não exige que isso ocorra, mas que a ação seja voltada para esta finalidade.
A ação deve ter por propósito abolir o Estado Democrático de Direito, o que se dá mediante o impedimento ou a restrição do exercício dos poderes constitucionais, quais sejam, o Executivo, o Legislativo e o Judiciário, com o emprego de violência ou grave ameaça, que são os modos de execução do delito.
Note-se, assim, que a conduta praticada deve ao menos ter o potencial de produzir o resultado pretendido, embora possa não ocorrer, uma vez que o verbo do tipo é “tentar abolir”. Com isso, embora não ocorra a abolição do Estado Democrático de Direito, o que dar-se-ia, em regra, com golpe de estado ou revolução e a imposição de um regime totalitário, é exigido pela norma que um dos Poderes da República seja impedido ou ao menos tenha restringido o regular exercício de suas atribuições ou jurisdição.
Com efeito, os elementos objetivos “impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais”, não se encontravam presentes no art. 18 da LSN, mas no artigo 17 de forma autônoma e ainda com redação um pouco diferente.
Dessa forma, se não ocorreu o impedimento ou, ao menos, a restrição do exercício de um dos poderes da República, não pode haver a condenação por delito consumado.
Além do mais, para a adequação típica, deve ter havido violência à pessoa ou grave ameaça e que a conduta tivesse o potencial de colocar em risco o Estado Democrático de Direito, sendo essa a intenção do agente ao proferir palavras ou escritos, quando se tratar de crime cometido com esse modo de execução. Havendo atos concretos de violência contra pessoa, fica muito mais fácil interpretar a norma, o que não ocorre com a grave ameaça, normalmente cometida por escritos, palavras ou até mesmo por gestos. Excepcionalmente, como já dito, poderá ocorrer situações muito graves em que a violência contra a coisa implique a grave ameaça necessária para a adequação típica, como quando atinge bens públicos de suma importância ou valiosos para o Estado.
Destarte, meras bravatas ou simples ameaças, destemperos emocionais, patacoadas ou desabafos, “quebra-quebra”, que não tenham o condão de colocar em perigo a ordem constitucional vigente, podem até configurar crime contra a honra, ameaça e de dano, mas não contra o Estado Democrático de Direito.
Malgrado seja discutível, por se tratar de crime plurissubsistente, pode, em tese, ocorrer a tentativa, quando o sujeito, tendo como intenção a abolição do Estado Democrático de Direito, empregar a violência ou a grave ameaça e não conseguir impedir ou restringir o exercício dos poderes constitucionais.
Outra conduta, ainda mais grave, vem delineada no artigo 359- M, que dispõe: “Tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído: Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 12 (doze) anos, além da pena correspondente à violência”.
Nesta conduta, o agente vai mais longe. Ele não visa apenas impedir ou restringir o exercício dos poderes constitucionais. Ele pretende, com o emprego de violência contra a pessoa ou grave ameaça, derrubar o governo legitimamente constituído, que me parece ser o Executivo, aquele que efetivamente governa no regime presidencialista.
Não é exigida a deposição do governo, contentando-se a norma com a mera tentativa. Assim, ao empregar violência ou grave ameaça com o propósito de depor o governo legitimamente constituído, mesmo que isso não ocorra, o crime restará consumado. Como se trata de crime de atentado, punindo-se da mesma forma a consumação e a tentativa, não se faz possível o conatus.
A conduta praticada deve ao menos ter o potencial de produzir o resultado pretendido, nada obstante possa não ocorrer, uma vez que o verbo do tipo é “tentar depor”.
Portanto, como ocorre com o crime de abolição violenta do estado democrático (art. 359-L, do CP), meras bravatas ou simples ameaças, destemperos emocionais, patacoadas ou desabafos, vandalismo, que não tenham o condão de colocar em perigo a ordem constitucional vigente, podem até configurar crime contra a honra, ameaça e de dano, mas não contra o Estado Democrático de Direito.
Também é elemento objetivo do tipo que o governo seja legítimo, isto é, eleito de acordo com as normas pertinentes previstas na Constituição Federal. No caso de o governo não ser legítimo, fruto de golpe de estado, revolução ou outra situação análoga, o fato não constituirá o presente delito, podendo advir outro por conta da violência ou grave ameaça empregada contra alguém.
Por critério de lógica, a violência a que alude a norma só pode ser a física e contra alguém, e não a contra coisa, ao passo que a ameaça deve ser grave, como expressamente definida na norma. Contudo, como já afirmado, excepcionalmente a violência contra a coisa poderá constituir grave ameaça quando alcançar bens públicos valiosos ou de suma importância para o Estado.
É importante observar que não há como a pessoa ser condenada ao mesmo tempo pelo crime de golpe de estado (art. 359-M do CP) e pelo delito de abolição violenta do estado democrático (art. 359-L do CP), quando a conduta é única e o desígnio é voltado para apenas uma finalidade, isto é, golpe de estado ou a abolição do estado democrático com o impedimento ou restrição de funcionamento de um dos poderes da República. Os dois crimes atingem o mesmo bem jurídico (estado democrático de direito) e a mesma vítima (Estado genericamente considerado). No momento que se tenta ou se dá um golpe de estado, inexoravelmente se está tentando ou abolindo o estado democrático de direito, uma vez que é atingido o Poder Executivo Federal, mais precisamente a presidência da República. Não se faz possível a ocorrência de um golpe de estado sem que haja a abolição do estado democrático de direito, posto que um dos poderes constitucionais (o Executivo Federal) estará impedido de funcionar legitimamente. Haveria, no caso, bis in idem (dupla valoração), posto que o agente seria punido duas vezes pelo mesmo fato. Com efeito, a abolição do estado democrático é meio necessário para a deposição indevida do governo legitimamente eleito (golpe de estado), aplicando-se o princípio da consunção no conflito aparente de normas.
Por outro lado, é possível que o autor queira apenas abolir o estado democrático de direito, sem que pretenda depor o governo legitimamente eleito, como, v.g, com sua conduta típica, tiver a intenção de fechar o Congresso Nacional ou o Supremo Tribunal Federal. Neste caso, provada a autoria e materialidade delitiva, a condenação deve ser tão somente pelo crime de abolição violenta do estado democrático (art. 359-L do CP).
Entretanto, p. ex., caso o sujeito queira fechar o Congresso Nacional ou o Supremo Tribunal Federal e, ao mesmo tempo, pretender depor o governo legitimamente eleito, daí sim haverá dois delitos em concurso formal imperfeito pelo fato de, embora a conduta ser única, existirem desígnios autônomos, aplicando-se a regra prevista no artigo 70, “caput”, segunda parte, do Código Penal [1].
Saliento que os crimes elencados na nova legislação são todos de suma gravidade por atentarem contra o regime democrático, a Federação, a soberania nacional e a segurança nacional.
Crimes de opinião, como não deveria deixar de ser, não fazem parte do título que trata dos crimes contra o estado democrático (crimes políticos), passando a ser previstos como crimes comuns elencados no Código Penal e com sanção bem mais amena, e todos, isoladamente, dificilmente ensejarão a pena de prisão, exceto no caso de reiteração criminosa (reincidência).
Em todos os tipos penais em que a violência é seu elemento constitutivo, a pena correspondente (lesões corporais ou homicídio) será aplicada cumulativamente com a prevista no tipo penal por expressa disposição de legal (concurso material ou formal imperfeito, a depender da hipótese).
A violência contra coisa será absorvida pelo tipo, cuidando-se, se o caso, de ato preparatório ou meio necessário para a consumação do delito (princípio da consunção).
Como norma de encerramento o artigo 359-U dispõe sobre a liberdade de expressão e de manifestação do pensamento, direito fundamental e já consagrado na Constituição Federal (art. 5º, IV), tão vilipendiado na atualidade. Dispõe a norma que: “Não constitui crime previsto neste Título a manifestação crítica aos poderes constitucionais nem a atividade jornalística ou a reivindicação de direitos e garantias constitucionais por meio de passeatas, de reuniões, de greves, de aglomerações ou de qualquer outra forma de manifestação política com propósitos sociais”.
O direito à livre manifestação do pensamento consiste justamente em poder dizer o que pensa sobre algo ou alguém, inclusive poderes constituídos e seus agentes, sem que importe crime (atipicidade formal e material). Esta regra constitucional é fruto de um país democrático e uma lei, que tutela justamente o Estado Democrático de Direito, nunca poderia punir a manifestação do pensamento, que é um dos seus pilares.
Qualquer pessoa ou Instituição, não estando livre os chefes de Estado, de Poder e outros agentes públicos e políticos, podem ser criticados, cabendo ao Poder Judiciário realizar juízo de ponderação de valores para chegar à conclusão sobre a natureza jurídica da crítica (exercício de um direito ou crime), observando que medidas desproporcionais devem ser coibidas.
Do mesmo modo, não é possível criminalizar as atividades jornalísticas e de comunicação, que também possuem fundamento constitucional. O artigo 5º, inciso XI, da Magna Carta, dispõe ser livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença. No mesmo sentido, o disposto no artigo 220 da Carta Constitucional, que veda qualquer tipo de restrição à manifestação do pensamento, à criação, à expressão e à informação, sob qualquer forma, processo ou veículo, observadas outras regras constitucionais, que devem conviver harmonicamente sem que haja qualquer tipo de excesso. E complementa o dispositivo seu § 2º, que veda qualquer espécie de censura de natureza política, ideológica e artística.
Por fim, reivindicações de direitos e garantias constitucionais, por meio de passeatas populares, reuniões, greves ou quaisquer outras formas de manifestações políticas com propósitos sociais, não podem ser consideradas infrações penais. Nunca um direito protegido pela própria Constituição Federal pode ser criminalizado, o que seria paradoxal, ilógico e certamente inconstitucional.
A liberdade de reunião é garantida pela Magna Carta, no seu artigo 5º, inciso XVI, que diz: “Todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente”
Ou seja, manifestações pacíficas que reivindiquem a observância de direitos e garantias constitucionais com a tomada de providências constitucionalmente previstas, não podem ser consideradas inconstitucionais e muito menos criminosas, mesmo que críticas aos poderes constituídos.
Claro que esses direitos, como quaisquer outros, não são absolutos e, quando ultrapassados seus limites, seu indevido exercício pode constituir infração, inclusive de natureza penal.
Aliás, cuidando-se de norma penal benéfica ao acusado ou investigado, o artigo 359-U do Código Penal deve ser aplicado analogicamente a outros tipos penais que punem os delitos de opinião, como os contra a honra (arts. 138, 139 e 140 do CP) e incitação ao crime (art. 286 do CP).
Enfim, os novos tipos penais devem ser muito bem analisados e empregados a fim de que não constituam elemento de perseguição política ou ideológica.
[1] Ocorrerá o concurso formal imperfeito quando a ação ou omissão for dolosa e os crimes concorrentes resultarem de desígnios autônomos, conforme o disposto no concurso material. Desígnio autônomo é aquele em que o agente deseja a prática de mais de um crime, tendo vontade e consciência em relação a cada um deles. Entendeu o legislador que como há vontade dirigida a diversos fins, subsiste íntegra a culpabilidade pelos crimes praticados, não se justificando a diminuição da pena. E a solução não pode ser outra que não a somatória das penas como no concurso material, já que houve a prática de dois ou mais crimes desenhados pelo agente, embora com uma só conduta dolosa. O exemplo que pode ser dado é o do agente que, pretendendo matar duas pessoas, amarra-as em uma árvore e deliberadamente as atropela de uma só vez com um caminhão, matando-as. Nesse caso, as penas serão aplicadas cumulativamente, exceto se excederem as que seriam cabíveis no caso de existir concurso material, que será aplicado (concurso material benéfico).
Autor: César Dario Mariano da Silva – Procurador de Justiça – MPSP. Mestre em Direito das Relações Sociais – PUC/SP. Especialista em Direito Penal – ESMP/SP. Professor e palestrante. Autor de diversas obras jurídicas, dentre elas: Comentários à Lei de Execução Penal, Manual de Direito Penal, Lei de Drogas Comentada, Estatuto do Desarmamento, Provas Ilícitas e Tutela Penal da Intimidade, publicadas pela Editora Juruá.