Pretendem alguns parlamentares representar contra o Senador Rodrigo Pacheco por ter cometido o delito de prevaricação ao não dar andamento a pedidos de impeachment contra o Ministro Alexandre de Moraes[1].
Não pretendo analisar o mérito da questão por não conhecer os fatos e nem os fundamentos do eventual pedido.
Limito-me, apenas, a esclarecer no que consiste tal delito e que cada um tire suas conclusões.
O delito de prevaricação vem definido no artigo 319 do Código Penal nos seguintes termos: “Retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal: Pena. Detenção, de três meses a um ano, e multa”.
A norma tutela a administração pública, mormente quanto à lisura e presteza dos atos funcionais de seus agentes. Por isso, há necessidade de que ocorra infração ao dever funcional do agente público com lesão aos princípios da legalidade ou da moralidade administrativa.
São três as condutas típicas:
1. retardar ato de ofício indevidamente (omissão); 2. deixar de realizar ato de ofício indevidamente (omissão); 3. praticar ato de ofício contra disposição expressa de lei (ação).
Retardar tem o sentido de atrasar, adiar, procrastinar. Assim, o funcionário público não realiza o ato de ofício no prazo prescrito (se existente) ou em tempo hábil para que possa produzir seus efeitos.
Deixar de realizar é não praticar. Nesse caso, a intenção do funcionário público não é apenas protelar o ato de ofício, mas omitir-se e não o praticar.
Praticar é conduta comissiva e consiste na realização do ato de ofício.
Nas duas primeiras condutas típicas, é exigido o elemento normativo do tipo “indevidamente”, que significa injustamente, incorretamente, não permitido pelo ordenamento jurídico. É o caso do cartorário que, por não gostar do requerente de uma certidão, não a expede no prazo devido, ou do policial que, por piedade, não prende em flagrante alguém que acabou de cometer um crime.
Na última conduta, também há o elemento normativo do tipo “contra disposição expressa de lei”. Como tal, deve ser entendido o dispositivo que não oferece dúvida de interpretação. Exige-se, portanto, que o ato de ofício afronte a lei, não havendo esse delito se houver infringência de outra espécie de norma de categoria inferior, como portaria, regulamento etc. É o caso do Delegado de Polícia que, por ser amigo do marido que agrediu a esposa e lhe causou lesões corporais graves, arquiva o inquérito policial sem que haja requerimento do Ministério Público e decisão do Juiz de Direito.1
Em qualquer das condutas típicas é exigido o elemento subjetivo do tipo: “para satisfazer interesse ou sentimento pessoal”. Inexistindo um desses elementos alternativos, o fato será atípico ou poderá constituir outro delito. Assim, a negligência, imperícia ou imprudência excluem o crime, haja vista a inexistência do dolo.
Ato de ofício é aquele ligado à atividade funcional do agente. Dessa forma, se o ato foge à atribuição do funcionário público, não haverá o delito por atipicidade da conduta, uma vez que o crime se caracteriza pela infidelidade ao dever funcional.
Interesse pessoal é a vantagem que o funcionário público pretende obter, que pode ser econômica ou moral. Havendo acordo entre o funcionário público e o particular para o recebimento de vantagem indevida, o crime será o de corrupção passiva (CP, art. 317) e não prevaricação. Se a vantagem indevida foi oferecida ou prometida pelo particular para determinar ao funcionário público a prática, omissão ou retardamento do ato de ofício terá aquele praticado o crime de corrupção ativa (CP, art. 333).
Sentimento pessoal está ligado a afetividade do sujeito ativo em relação às pessoas ou fatos a que se refere a ação ou omissão, como a amizade, o ódio, a piedade etc. É indiferente para a configuração do delito eventual nobreza dos sentimentos e altruísmo dos motivos determinantes, que poderão, se o caso, serem considerados na fixação da pena.
Noronha resume muito bem e em poucas palavras o significado do delito: “Prevaricação é infidelidade ao dever de ofício, à função exercida. É o não cumprimento das obrigações que lhe são inerentes, movido o agente por interesse ou sentimentos próprios”[1].
O delito em apreço possui alguma semelhança com a corrupção passiva privilegiada (art. 317, § 2º, do CP), mas com ela não se confunde. Naquele delito, o funcionário público transige com seu ato funcional em face de pedido ou influência de terceiro. Não o faz espontaneamente, mas por fatores externos é levado a praticar, deixar de praticar ou retardar ato de ofício, com violação de seu dever funcional. Na prevaricação, não há pedido ou influência de terceiro. O sujeito realiza a conduta por interesse ou sentimento próprios e sem o pedido ou intervenção de terceiro.
A prevaricação é crime eminentemente doloso e pressupõe, assim, a vontade livre e consciente de realizar a conduta típica. Havendo mera imprudência ou negligência, ou mesmo imperícia, o fato é atípico penalmente.
Ademais, é elemento subjetivo do tipo que o agente público, que tem a obrigação de agir, omita-se ou retarde o ato de ofício para satisfazer interesse ou sentimento pessoal, de forma livre e consciente, isto é, dolosamente. Ou que o ato de ofício seja praticado dolosamente contra disposição expressa de lei, que é um elemento normativo do tipo, também para satisfazer interesse ou sentimento pessoal. Concluindo, para que tenha ocorrido o delito de prevaricação por omissão do Senador, que, por ser presidente da Casa, tem o dever jurídico de agir ao se deparar com conduta que contenha indícios suficientes a caracterizar crime de responsabilidade praticada pelo Ministro, que pode 2
levar ao seu impedimento (impeachment), deve ter agido dolosamente e com o intuito de satisfação de interesse ou sentimento pessoal3
Notas de rodapé.
- Fonte: https://terrabrasilnoticias.com/2024/09/senado-oposicao-prepara-denuncia-contra-rodrigo-pacheco/ . ↩︎
- Direito Penal, v. IV, p. 253, Saraiva, SP, 2003. ↩︎
- Sobre como se procede ao processo de impeachment de Ministro do STF, vide: https://www.jusbrasil.com.br/artigos/o-inexistente-controle-do-stf/1769055302?_gl=1*p4eh16*_gcl_au* . ↩︎