Escrevi em 1988, durante o período da Constituinte, o artigo abaixo, com esse título, visando chamar a atenção, para um tema que considerava importante de ser discutido, e equacionado, no texto constitucional. Passados mais de trinta anos, os dados do IBGE revelam um quadro de agravamento da situação.
O texto de 1988 dizia o seguinte:
“Estudo do IPEA-Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, revela que existem no Brasil 15 milhões de crianças e adolescentes que vivem em estado de miséria, o que representa 46,9% da população de indigentes e um quarto da população infanto-juvenil do País.
Tais números estarrecedores não têm provocado qualquer repercussão junto aos meios de divulgação, aos formadores de opinião ou aos políticos. Campanhas contra a fome ou manifestações e movimentos em favor de menores carentes são altamente meritórias, e absolutamente necessárias no curto prazo.
Não contribuem em nada, contudo, para reverter uma situação absurda e inaceitável para um País que dispõe de território, recursos naturais, tecnologia e recursos humanos para garantir condições mínimas de vida à sua população.
O processo de empobrecimento que o Brasil vem experimentando nos últimos anos revela sua face mais dramática nesses números relativos à infância e à juventude brasileira: 25% dessa população não tem presente e nem terá futuro.
Afora o lado humano dessa tragédia, existem os desdobramentos dessa situação no futuro pois esse grupo de indigentes infanto-juvenis, quando atingir a idade adulta, não terá condições de se inserir no sistema produtivo.
Existem muitas causas para explicar esse quadro dramático da miséria em geral e, em especial, na população abaixo de 18 anos, entre as quais se destacam o processo de urbanização acelerado e desordenado e a desestruturação familiar.
De cada 10 crianças ou adolescente que vivem em situação de indigência, um pertence a uma família chefiada por mulher, seja em consequência do abandono do lar pelo marido ou, o que é comum entre as mais jovens, por ser mãe solteira.
Não se pode ignorar, contudo, que a maior responsabilidade por essa situação cabe à desorganização do Estado, que deixou de atender suas funções, e ao processo recessivo que provocou queda da renda “per capita” brasileira na última década.
A inflação desenfreada, as políticas anti-inflacionárias e o modelo centralista, estatizante e ineficiente que predominou no Brasil nos últimos anos levou à falência do Estado como agente de prestação de serviços à sociedade.
Como essa camada da população, os 32 milhões de miseráveis, menores e adultos, não tem voz, sua situação não desperta a indignação que seria necessária para se reverter esse quadro degradante.
As discussões sobre a revisão constitucional e as reformas políticas e econômicas, necessárias à erradicação da inflação e a retomada do crescimento, não levam em conta o “silêncio dos inocentes,” mas a vociferação dos privilegiados que buscam manter seus privilégios sob a capa do nacionalismo ou de uma ideologia retrógada e superada em todo o mundo.
Cabe àquela parcela da população brasileira que tem voz, embora raramente utilize, e não tem privilégios a defender, lutar para que o Congresso Nacional puna a corrupção, mas também mude as regras que a favorecem e que, simultaneamente, promova as reformas que o País reclama.
A revisão constitucional não é panaceia que vai resolver todos os problemas nacionais, mas pode criar condições para que, com vontade política, determinação e trabalho, o Brasil crie riquezas para poder eliminar a pobreza. (Agência Planalto) (Aqui termina o texto de 1988.)
Ao reler, constata-se que passados mais de trinta anos, a Constituição “Cidadã” em nada contribuiu para melhorar o cenário da pobreza no Brasil, mas, pelo contrário, a situação continuou a se agravar.
Essa questão da pobreza, especialmente da infância e adolescência, é preocupante não apenas em relação ao presente, como, sobretudo, para o futuro de toda uma geração., Estudo da UNICEF sobre “ as privações que afetam crianças e adolescentes no País e os desafios atuais, que incluem o agravamento da insegurança alimentar e da pobreza extrema, além de a piora da alfabetização e as persistentes desigualdades raciais e regionais, mostra que mais de 60% da população de até 17 anos vive na pobreza no Brasil.
A pobreza a que esse dado se refere é mais do que privação de renda, “tem a ver também com acesso a direitos básicos, como educação, saneamento, água, alimentação, proteção contra o trabalho infantil, moradia e informação”
Os dados do IBGE de 2021, que considera as linhas de pobreza propostas pelo Banco Mundial, revelam que cerca de 62,5 milhões de pessoas (ou 29,4% da população do país) estavam na pobreza e destas, 17,9 milhões na extrema pobreza, os maiores números de ambos os grupos desde o início da série, em 2012.
Ainda em 2021, cerca de 62,8% das pessoas que vivem em domicílios chefiados por mulheres sem cônjuge e com filhos menores de 14 anos estavam abaixo da linha de pobreza.
Esses números mostram que não se pode aceitar a continuidade dessa situação. As políticas sociais adotadas nos últimos anos, apesar de terem sido, e continuarem sendo, importantes, para amenizar as consequências mais graves da pobreza e da miséria, visam mais a atacar os efeitos, mas não conseguem mudar estruturalmente a situação.
Existem muitos estudos sobre como atacar esse problema, que exige foco é atuação integrada dos três níveis de governo. Parece-me, no entanto, que qualquer programa para mudar essa situação, tem que começar por atuar na primeira infância, desde a mais tenra idade, cuidando da alimentação, da saúde e, inclusive, procurar compensar, quando for o caso, a falta do ambiente familiar necessário ao desenvolvimento da criança. É preciso que as pessoas consigam se sustentar e, inclusive, gerar um excedente que lhes permitam progredir, o que significa aumentar a produtividade.
A PNAD de 2023 revela que 31% das crianças até um ano de idade não conseguiram creche e 38,5% de um a três anos também não conseguiu vaga e, em algumas regiões apesar da obrigatoriedade, ainda há um número expressivo de crianças na faixa de 4 a 5 anos que ainda não estavam na escola.
Esse é um dado que mostra a grave deficiência do atendimento da população mais vulnerável, em uma fase que pode marcar o destino da criança para o resto da vida, pois as crianças de até 5 anos, especialmente as que vivem em lares desestruturados, necessitam desse reforço para compensar a falta de um ambiente familiar saudável.
De outro lado o mesmo PNAD mostrou que existe, 9,6 milhões de jovens, cerca de 20% da população entre 15 e 29 anos, que estão sem estudar e sem trabalhar, os chamados “nem nem”, que não tem presente e nem qualquer perspectiva de futuro.
Alega-se, muitas vezes, que o problema é a falta de recursos dos governos e, portanto, é preciso aumentar os impostos para poder atendê-los, o que os dados desmentem.
Assiste-se no momento no Brasil mais preocupação com concentração da riqueza, do que com o aumento da pobreza. Pretendem reduzir a disparidade de renda pelo aumento da tributação dos mais ricos, ao invés de um aumento da renda dos mais pobres. Isto porque a pobreza serve de pretexto para essa posição, como se o aumento da receita proveniente da maior progressividade do imposto, a tributação dos dividendos e outras medidas dessa natureza fosse resolver o problema da pobreza.
Se aumento da carga tributária fosse a solução, não haveria mais pobreza no Brasil. Isto porque, desde quando o artigo foi escrito, em 1988, a carga tributária que era em média 26% do PIB, passou para 36% nesse período e, o que se viu, foi aumento da pobreza e não sua redução. Foram dez pontos percentuais de aumento sobre o PIB sem alterar a grave situação da pobreza no país, sem que se explique aonde foram consumidos esses recursos.
Novo aumento, seguramente não resolverá porque a estrutura do gasto público tende a absorver todos os recursos para os grupos privilegiados, tanto do setor público como do privado, destinando apenas migalhas para amenizar, não a pobreza, mas a fome, com medidas importantes conjunturalmente, mas que não alteram a situação, que continua se agravando. Compromete-se não apenas o presente dessa imensa parcela da população, mas, sobretudo, o futuro, deles e o do país. O desafio é enorme e exige a participação de todos os segmentos da sociedade. Para isso é preciso que o “silencio dos inocentes” seja compensado pela voz de todos aqueles que se encontram em posição privilegiada, não por benesses públicas, mas pelo fato de terem tido, e aproveitado, oportunidades.