Decisão do órgão sobre relógio de Lula favorece Bolsonaro e institucionaliza um liberou geral sobre presentes de chefes de Estado .
Para o TCU, presidentes podem ficar com presentes milionários recebidos no exercício do mandato. E a razoabilidade? E a moralidade? E a legalidade? Uma das grandes tentações do poder, que ao mesmo tempo representa um grande desafio para as instituições democráticas e republicanas, é preservar a linha divisória entre o público e o privado para aqueles que receberam mandato eletivo. Servir a sociedade e não servir-se do poder visando ao autobenefício.
Isso porque o Brasil, como se sabe, tem um legado patrimonialista muito ruim e, ao longo dos séculos, tem travado uma luta hercúlea pela libertação da cultura do compadrio e do mandonismo político que conspiram permanentemente contra os cânones republicanos. Os limites ao poder são sempre repudiados de forma ferrenha, como, por exemplo, as quarentenas, para evitar conflitos de interesses.
Pesquisas realizadas pelo Latinobarómetro em reiteradas edições revelaram ser essa uma grande preocupação dos brasileiros em comparação com os demais latino-americanos.
Nesse universo, um tema que tem motivado intensos debates diz respeito aos presentes recebidos de outros chefes de Estado pelos presidentes do país durante o exercício dos mandatos, os quais se deveriam entender destinados ao nosso patrimônio público.
Nos termos do Código de Ética da Presidência em vigor, só podem ser recebidos e incorporados ao patrimônio pessoal da autoridade quando se tratar de bem de pequeno valor (até R$ 100) e se tratar de objeto de brinde ou objeto para uso personalíssimo. Por exemplo, uma camiseta, um boné ou um retrato.
Quando estamos lidando com bens valiosos, eles devem ser incorporados ao patrimônio da União, sendo certo que o apossamento dos objetos caracteriza o crime de peculato-apropriação. Bens valiosos recebidos por mandatários pertencem à União, e jamais à pessoa física do mandatário.
O assunto começou a ser disciplinado por lei em 1991, construindo-se um Código de Conduta da Alta Administração Federal, regulado por resolução e, posteriormente, objeto do decreto 4.344 de 2002, havendo entendimento do TCU (precedentes jurisprudenciais) reforçando esta interpretação, invocando-se especialmente os princípios da razoabilidade, moralidade e legalidade.
Como é de conhecimento notório, o ex-presidente Bolsonaro se vê investigado pela prática de diversos crimes de peculato-apropriação ao receber de mandatários de países em que esteve em muitas ocasiões joias diversas na condição de presidente da República do Brasil.
Os bens recebidos valem milhões e milhões, e à luz dos princípios acima mencionados, devem ser considerados como bens que se destinavam ao patrimônio público brasileiro, tendo sido desviados.
Alguns deles inclusive foram escondidos em uma escultura, que foi colocada em uma mochila do ajudante de ordens da Presidência, que interveio em diversas ocasiões, fazendo-se uso abusivo do poder, visando a obter a indevida liberação daqueles objetos apreendidos pela Receita Federal.
No entanto, é fato igualmente público que o presidente Lula recebeu em 2005 um relógio do modelo Santos Dumont, presenteado pela marca Cartier, fabricado em ouro branco 16 quilates e prata 750 quilates (vendido hoje por R$ 59.500,00).
O TCU foi chamado a decidir sobre a regularidade ou não da manutenção da posse do relógio com o presidente, especialmente diante do caso em curso de Bolsonaro.
É sempre importante lembrar que os ministros do TCU são escolhidos unicamente por critérios políticos, com aprovação do Senado, e seus cargos são vitalícios, a exemplo do STF. E que o procurador-geral de Contas que atua perante o TCU pode ser reconduzido sem limite de mandatos consecutivos.
Surgiram 3 correntes dentro do tribunal. Segundo uma delas, Lula teria de devolver o bem, aplicando-se os princípios já mencionados de razoabilidade, legalidade e moralidade, tendo em vista que o bem não tem natureza personalíssima.
Segundo a 2ª corrente, Lula não poderia ser obrigado a devolver o relógio por uma razão específica: em 2005, não vigorava esta regra e regras punitivas não podem jamais retroagir em prejuízo dos acusados.
Na visão da 3ª corrente, não havia legislação específica à época definindo os limites máximos dos valores exatos dos bens a partir dos quais devem ser incorporados ao patrimônio público.
Assim, diante da falta de regras claras, isso não poderia prejudicar Lula, que assim estaria desobrigado a devolver o relógio. Ou seja, acaba sendo infelizmente um “liberou geral” para a questão dos presentes recebidos.
Ou seja, para desobrigar Lula a devolver o relógio, a 3ª corrente (vencedora) cria um precedente que beneficia Bolsonaro, mas a ética administrativa republicana sai arranhada, abalada e muito enfraquecida.
Na sequência, Lula veio a público declarar que restituirá o relógio para que Bolsonaro não se beneficie, mas a verdade é que a decisão do Tribunal de Contas da União, por maioria de votos, está tomada, independentemente da restituição voluntária por parte de Lula.
Bolsonaro poderá invocar este precedente em seu benefício alegando o princípio in dubio pro reo, não obstante ficar em posição politicamente desconfortável diante da restituição voluntária do relógio por parte de Lula. Na segunda-feira (12.ago.2024), a defesa do ex-presidente já pediu o arquivamento do processo.
Infelizmente, o que nos resta lamentavelmente como saldo é o enfraquecimento da tese protetiva do patrimônio público, respaldada nos princípios da razoabilidade, da legalidade, da moralidade e da prevalência do interesse público, demarcadores fundamentais da linha divisória entre o público e o privado.
Fonte: Roberto Livianu, 56 anos, é procurador de Justiça, atuando na área criminal, e doutor em direito pela USP. Idealizou e preside o Instituto Não Aceito Corrupção. Integra a bancada do Linha Direta com a Justiça, da Rádio Bandeirantes, e a Academia Paulista de Letras Jurídicas. É colunista do jornal O Estado de S. Paulo e da Rádio Justiça, do STF. Escreve para o Poder360 às terças-feiras.