Depois de mais de três anos discutindo a Pec 45\19, e de tantas mudanças ao projeto original, chegamos a um ponto em que parece necessário fazer uma parada e voltar ao ponto de partida para um eventual reposicionamento, ao invés de continuar avançando em um emaranhado cada vez mais complicado, que caminha para uma direção contrária ao objetivo inicial.
O que se esperava da Reforma Tributária do ponto de vista dos contribuintes? Nada muito ambicioso; simplificação do sistema, sem aumento da carga tributária. Ao invés de se adotar o procedimento clássico de se partir dos problemas para a solução, isto é, analisar as maiores dificuldade dos contribuintes e discutir as possíveis alternativas para resolver os problemas contatados, passou-se a debater uma proposta elaborada por um órgão privado.
Por que a proposta inicial foi sendo alterada a cada passo que avançava nas discussões? A resposta mais provável é a de que ela não considerava a realidade do país, tinha múltiplos objetivos nem sempre do interesse dos contribuintes e tornava cada mais complexa as soluções para adaptá-la à realidade.
A PEC45\129 foi um projeto muito bem elaborado do ponto de vista teórico, apresentada na Câmara dos Deputados, como um sistema de tributação do consumo baseado no IVA, com alíquota única, sem incentivos fiscais, seguindo os padrões de países da OCDE. Essa foi a narrativa que acompanhou o debate na Câmara, e fora dela. Embora parecesse boa ideia, havia alguns pontos que não correspondiam à realidade da maioria dos países daquela Organização. Além disso, se referiam a realidades muito diferentes da brasileira.
O primeiro ponto, é que a maioria expressiva dos países da OCDE não pratica alíquota única, como se constata em seu Relatório de 2022. Os poucos que possuem alíquota única, elas muito baixas, comparadas com a média da OCDE. Outro ponto não considerado, e que não foi enfatizado pelos divulgadores e apoiadores da PEC, é que os países que usam o IVA, com pouquíssimas exceções, são estados unitários, ou o imposto e´ administrado pelo governo central.
O Brasil com três níveis federativos, apresenta características completamente distintas que dificultam a unificação dos tributos de consumo de diferentes entes, como afirmava o ex-ministro Francisco Dorneles, recentemente falecido.
Além disso, a proposta visa muitos objetivos, além da criação do IVA, mas a ênfase que se dá nos debates é sobre as vantagens desse imposto.
Dentre os múltiplos objetivos, temos a mudança da natureza de um imposto, IPI, e uma contribuição PIS/COFINS, para transformá-los em imposto de consumo. Pretende também transferir carga tributária de um setor (Indústria) para outro (Serviços). Muda a sistemática de incidência do Imposto da origem para o destino. Altera o critério para distribuição das cota-partes do IBS em detrimento dos municípios maiores.
O texto votado na Câmara, visando viabilizar sua aplicação, propõe compensar incentivos fiscais dos estados e estimular o desenvolvimento regional criando dois Fundos, sem fundos sem especificar suas fontes de financiamento.
Para aprovar essas mudanças, que não representam uma reforma, mas uma disrupção tributária, foi necessário adotar um período de transição de oito anos para os contribuintes. Para os entes federativos a transição prevista era de 50 anos, que seria algo inédito no Brasil e no mundo, se não for alterada no caminho.
A proposta do Senado aumenta o valor do Fundo de compensação dos incentivos e, o mais grave, abre a possibilidade de que, se os montantes previstos forem insuficientes, o governo federal deverá aportar mais recursos.
Curiosamente, ilustres defensores da aprovação da Reforma, mesmo com todas distorções, criticam a multiplicidade de alíquotas ou sistemáticas diferenciadas, mas não manifestam preocupação com as finanças federais, embora maioria se manifeste em favor do equilíbrio fiscal.
Quando se fala que a PEC será neutra, não aumentando a carga tributária e, inclusive criando regras para avaliar os resultados da substituição do ICMS, ISS e PIS\COFINS pelo CBS e IBS, não se considera que os Fundos representem um aumento bastante significativo da tributação, pois os recursos sairão dos contribuintes. Mais grave é que, como o governo federal é deficitário, e vem aumentando impostos por conta do “arcabouço fiscal”, será necessário fazer mais aumentos para atender as verbas necessárias para os Fundos. Acresce notar que o período de vigência desses Fundos, ultrapassa o mandato do atual governo, o que, como pode acontecer também com a transição entre os entes federativos, possam ser revistos. Argumentar que isso é difícil porque é constitucional não parece procedente, porque vimos a aprovação do fim do “teto de gastos” e, pior ainda, o “atropelo” da Proposta da RT na Câmara.
Para atingir a esses múltiplos objetivos, transfere para a Lei Complementar, disposições absolutamente necessárias para a análise do que se está propondo constitucionalizar.
Os principais pontos do texto aprovado pela Câmara foram mantidos pelo Relator no Senado, com ajustes pouco significativos.
O ponto mais polêmico da PEC 45, a criação do Conselho Federativo, que vai centralizar poderes dos Estados e Municípios, além ser um órgão de arrecadação, normativo, árbitro nos conflitos federativos teve pequena mudança, além do nome para Conselho Gestor, com a retirada da competência para apresentar Projeto de Lei Complementar. Manteve a proibição de que os entes subnacionais não mais poderão conceder incentivos fiscais, o que, somado à centralização da arrecadação, implica subtrair-lhes poderes decorrentes da autonomia prevista na Constituição como cláusula pétrea.
Como parece que ainda não está suficientemente complexo, anunciam split payment e a auto liquidação das operações, que não são utilizados de forma generalizada na maioria dos países, mas apenas em relação a produtos ou operações específicas, pelos seus efeitos negativos de aumento da burocracia e sobre o capital de giro das empresas.
Permite criar o “cashback” para produtos da cesta básica adquiridos por consumidores de baixa renda, o que geraria muita burocracia, sem falar de instituir a “cesta básica nacional” em país continental e com regiões e hábitos alimentares tão diversificados. Colocar essas “inovações” na Constituição mostra como o texto constitucional está empobrecendo. Para piorar, cria a cesta básica estadual, com alíquota diferenciada. Interessante que citam muito os países da OCDE, mas não seguem suas práticas, pois a grande maioria, simplesmente isenta os alimentos, sem se preocupar com o purismo ideológico de que isso beneficia os ricos, como se isso pudesse torna-los mais ricos. Ignoram a existência da enorme classe média baixa, que, em grande parte, tangencia a faixa dos mais pobres. Esquecem, também, que, mesmo, com esses expedientes, os preços aumentarão em virtude do imposto, e irão pressionar o IPCA, incorporando-se a correção de preços e tarifas.
Dentre as “inovações” introduzidas pelo Senado deve-se destacar a incidência do IS em 1,0% sobre a receita bruta sobre a extração de minerais, mesmo que destinados à exportação, quando os minérios estão se valorizando no mundo. Seguramente os concorrentes do Brasil devem apoiar essa medida, que, além disso, aumentará os preços de diversos produtos no mercado interno que se utilizam em larga escala dos minérios.
Não bastasse isso, adotou-se a CIDE para proteger os produtos fabricados na Zona Franca e foi restabelecida a possibilidade de os estados criarem contribuição par substituir as que incidiam sobre incentivos fiscais
Criam a “cesta básica nacional” e “cesta básica estadual” e colocam entre os itens prioritários a “saúde menstrual”, o que deve fato inédito em termos de textos constitucionais.
Todas essas “novidades” para simplificar o sistema tributário representam grande risco se forem constitucionalizadas, pois, na hora de regulamentar é que se verão as dificuldades para implementá-las.
Esse ponto é muito importante porque primeiro vamos constitucionalizar e, depois, fazer a Lei Complementar, a partir da qual serão feitas leis ordinárias, inclusive nos estados e municípios, quando poderão ficar mais explícitas as dificuldades de execução. O texto constitucional da PEC é muito detalhado, mas, ao mesmo tempo, é insuficiente para se analisar o efetivo impacto da reforma.
Dentre as “inovações” introduzidas pelo Senado deve-se destacar a incidência do IS em 1,0% sobre a receita bruta sobre a extração de minerais, mesmo que destinados à exportação, quando os minérios estão se valorizando no mundo. Seguramente os concorrentes do Brasil devem apoiar essa medida, que, além disso, aumentará os preços de diversos produtos no mercado interno que se utilizam em larga escala.
Não bastasse isso, adotou-se a CIDE para proteger os produtos fabricados na Zona Franca e foi restabelecida a possibilidade de os estados criarem contribuição sobre incentivos fiscais
Nunca na história deste país”, houve uma proposta tão ousada e abrangente de reforma tributária. Pouco se discute os riscos do período de transição com a convivência de dois sistemas, como se isso fosse algo simples e já testado aqui ou em outros países. O impacto sobre as empresas, com relação às inúmeras dúvidas existentes na atual legislação do ICMS, cujas distorções e problemas foram mantidos, e para o setor de serviços, que não tem experiência em operar o sistema de valor adicionado, não se afiguram como irrelevantes.
A elaboração da Lei Complementar vai mostrar a dificuldade de ajustar o texto à realidade e os verdadeiros custos financeiros, econômicos e sociais do aprovado e constitucionalizado.
Mais ainda, como a aprovação da PEC, da Lei Complementar e da legislação ordinária, para que a reforma possa iniciar, deverá demorar, cria-se, durante longo período, um clima de incerteza e de insegurança jurídica não apenas para as decisões no presente, como em relação ao futuro.
Marcel Solimeo é economista-chefe da Associação Comercial de São Paulo