Dia destes dei com uma postagem no facebook que me fez pensar: “ A cada foto que você tira no halloween um saci morre”. Achei interessante, uma tentativa a mais para salvar as tradições populares, tão desprezadas. Mas, não é bem assim. Os sacis começaram a morrer há muitos anos, até antes dos halloweens da vida. Apesar das tentativas desesperadas, desde Monteiro Lobato, para salvá-lo. Por enquanto ainda vive nos corações de algumas pessoas – na minha está vivíssimo, converso com ele e tudo! Vive, também, nos livros de Rossini Tavares de Lima – meu mestre em folclore – na Antologia de Folclore de Câmara Cascudo; nos livros do alagoano Theo Brandão ou nos do genial baiano Renato Almeida, folclorista e musicólogo, ministro, criador da Comissão Nacional do Folclore . Vive no sempre presente Mário de Andrade. E nos escritos de Oneida Alvarenga, que lecionou a matéria no Conservatório Musical nas décadas de 40 e 50. E nos livros, arquivos, documentários, artigos de folcloristas Brasil afora.
O que é folclore? É a manifestação do povo, seja ela em música, em dança, em barro ou madeira, em palha ou capim, na tradição oral, nos costumes, em crenças, em lendas. A lenda do saci surgiu no século XIX e tomou corpo depois que Monteiro Lobato resolveu fazer uma enquete pelo O Estado de São Paulo para que os leitores contassem suas versões da lenda ou seus “avistamentos” de sacis. O saci, festejado a 31 de outubro – mesmo dia do halloween – é Patrimônio Nacional.
Meu mestre Rossini Tavares de Lima era radical: folclore seria, para ele, apenas produção brasileira. O que não fosse criado pelo povo daqui não era folclore. Américo Pellegrini Filho, doutor em Sociologia pela USP e meu contemporâneo na Cásper Líbero – tivemos a mesma influência de Rossini Tavares de Lima – disse um dia, em artigo, que os eventos folclóricos podem se modificar com o tempo e que tudo aquilo que o povo incorpora e aceita vira folclore. Pela sua tese hallowween, portanto, também é folclore.
Eu aceito a tese. Mas fico com pena. Também prefiro o Menino Jesús a Papai Noel. Mas, aceito. Gosto mais de Presépio do que de Árvore de Natal, mas aceito a Árvore. Só detesto quem põe algodão nas coitadas fingindo que é neve. Por acaso temos neve no Brasil? Aceito quase tudo o que o povo abraça. Que é que eu vou fazer se o povo está esquecendoo saci e junto com ele os caiapós, as cheganças de marujo, o samba de umbigada, o moçambique, o cateretê (ai, Piracicaba! Não pare com o cateretê!) o boi-bumbá, as congadas – aliás, vi uma, belíssima, em São Francisco Xavier, há dois meses, vinda de São José dos Campos – os fandangos, as folias de Reis. O folclore brasileiro é riquíssimo. O que acontece é que a maioria dos brasileiros não o conhece, nunca viu, não sabe o que existe de riqueza cultural e de boniteza nos folguedos populares, por exemplo. Eu mesma, que pesquisei folclore, gosto do assunto, durante muito tempo andei pelas periferias das cidades procurando registrar esses eventos, eu mesma nunca vi um reisado ou uma chegança de marujo. Em compensação quase fui atropelada por um cavalo quando, certo dia, no Parque da Água Branca, resolvi me aventurar no local das apresentações para fazer fotos.
Nosso folclore é produto da influência lusa, africana e indígena. Isso dizem muitos. Mas nem só. Um trecho de um caiapó recolhido por Rossini Tavares de Lima em Piracaia, São Paulo, na década de 40 dizia: ”Sumu tudo inadara/da raça de tupi/ sumu barão de guara/do chefe de Itajubi”. E quem dançava não eram índios, mas os caipiras de lá, grande influência indígena. O maracatu, um dos folguedos populares mais conhecidos e de maior riqueza do país, nascido em Pernambuco, tem tradição afro. Um de seus passistas leva nos braços uma boneca negra, a Calunga e dança com ela sempre frente a uma igreja de Nossa Senhora do Rosári, influência também portuguesa na religiosidade. . Quem coletou músicas e textos de Maracatu foi o maestro Guerra Peixe, outro folclorista que segui e admirei.
Já nossos “bois” – boi bumbá, boi de mamão, bumba meu boi – segundo Câmara Cascudo são folguedos internacionais que aqui vieram parar. O boi é figura que aparece no folclore de vários países. No Pará e no Amazonas é boi bumbá; no Nordeste é bumba meu boi; em Santa Catarina é boi de mamão O folguedo é misto de teatro e de dança, o que Renato de Almeida chamava de danças dramáticas: o Boi morre, chama-se um Doutor, dá-se uma injeção no Boi que ressuscita, tudo dançado, teatralizado, cantado. Em Santa Catarina também há uma dança muito conhecida, a chimarrita, com certeza trazida pelos imigrantes açorianos. Há, nos Açores, uma dança, a Chamarrita. Em São Paulo ela também aparece. Rossini recolheu na Aldeia de Santa Cruz, em Carapicuiba, versos e música: “Chimarrete, chimarrete/que veio lá de Cotia/quem não dança o chimarrete/fica triste noite e dia”.
Outra dança, o fandango, que se apresentou muito no interior de São Paulo tem influência espanhola. O bater das mãos espalmadas, marcando o ritmo, imita as castanholas.
As cavalhadas, magníficas, de que a cidade de Franca, em São Paulo, é representativa, tem influências portuguesas e mouras. Existe, em Franca, desde 1831 e quem quiser vê-la (não percam!) deve se dirigir à cidade em agosto, mês do folclore. Há cavalhadas, também, em Pirenópolis.
O batuque, muito dançado em São Paulo de antigamente é uma dança em que cantadores fazem versos improvisados, geralmente se referindo a alguém presente ou a algum “causo”, depois homens e mulheres ficam frente a frente, em roda, os homens avançam e dão umbigadas nas mulheres, isso sempre cantando. Mário de Andrade recolheu versos de fandango que ele considerou um “achado” em uma cidade do interior – infelizmente não lembro onde. “Eu peguei o meu triste coração/por andar aborrecido/eu joguei no Tietê/Ai!Ai! coração que não me ama/Ai!Ai! é melhor peixe comê.” Em São Paulo e Minas Gerais temos as congadas – também chamadas congos – influência africana, possivelmente de Angola e do Congo.
Poderíamos ficar falando horas sobre os folguedos populares brasileiros. Mas gostaria de citar ainda as quadrilhas das festas juninas. Apareceram na França no século XVIII, dali foram para os Estados Unidos originando a Square Dance e acabaram chegando ao Brasil, primeiro nos salões aristocráticos e depois conquistando o povo. Uma dança que até hoje existe. E no país todo.
Para terminar: “folk” quer dizer “povo”, “lore” é “saber”, “sabedoria”. A palavra, criada por um arqueólogo inglês significa “sabedoria do povo”. Em linguagem menos erudita folclore quer dizer o que o povo faz. E se o povo está brincando de haloween – pra mal dos meus pecados! – isso aí se incorporou ao folclore. Tudo vem de fora – o mundo está cada vez menor, principalmente agora, depois da internet. Tudo se mistura, somos mestiços de índio, preto e português, mas também somos internacionais. Recebemos influência de toda a parte. E parece que o halloween veio para ficar. Repito, outra vez, eu prefiro a história dos sacis. Juro, até, que já vi alguns.
Regina Helena de Paiva Ramos, jornalista e escritora
Como sempre vc deu uma aula sobre folclore e as influencias que o povo brasileiro recebeu de outros povos que se fixaram no Brasil. Nao gosto do halloween, mil vezes prefiro o nosso Saci-pererê.