Defender o conceito de pátria, a família, a moral e os bons costumes, Deus e a propriedade privada, com todos seus consectários, em diversos grupos sociais e até mesmo em algumas instituições públicas e empresas privadas, passou a ser sinônimo de retrocesso, misoginia, homofobia e fanatismo religioso.
E não são poucas as pessoas, muitas delas conhecidas e influentes, que disparam impropérios contra quem assim pensa e se manifesta.
Uma piada ou brincadeira inocente, um comentário ou mesmo uma crítica podem ser interpretadas como insultos e até mesmo crime por muitos, causando embaraços e constrangimentos indevidos.
Ser politicamente correto é, para esse pessoal, desmerecer o conceito de pátria, não venerar a Deus, não defender a família ou a propriedade privada, aceitar o aborto indiscriminado e a liberação do uso de drogas. Caso contrário, a pessoa é fascista, fanática religiosa, misógina, homofóbica, retrógrada, desumana e capitalista burguesa.
A situação está tão radicalizada, que algumas músicas e canções são tidas como racistas, homofóbicas e misóginas. Cantar o “Rock das Aranhas” de Raul Seixas, ou “Nega do Cabelo Duro”, de Luiz Caldas, e outras do gênero, que fizeram sucesso nos anos 70, 80 e 90, pode render processo criminal, de acordo com a visão de fanáticos radicais progressistas.
Autores de sucesso, que escreveram livros clássicos, como o Sítio do Pica-pau Amarelo, de Monteiro Lobato, são ofendidos por tecerem alguns comentários ou retratarem fatos que, não obstante inaceitáveis na atualidade, eram aceitáveis e legais de acordo com os costumes e normas vigentes da época retratada.
Chegou-se ao absurdo de ser iniciado movimento para demolir monumentos clássicos e históricos existentes em diversas cidades. Isso porque, na visão monocular de alguns, retratariam situações ofensivas a grupos raciais.
Não podemos nos esquecer, porém, que os costumes evoluem e a sociedade progride ou regride, a depender da visão do intérprete do fato analisado.
Os fatos devem ser interpretados consoante a concepção de cada um, que vai variar de acordo com sua ideologia, que é construída com o passar dos tempos e experiências vividas.
Trocando em miúdos em uma linguagem bem simples: o histórico de experiências vividas, boas e ruins, a educação recebida e a religião moldam a estrutura do ser de cada pessoa, impregnando sua visão quanto aos fatos em apreciação, formando sua ideologia.
Com efeito, tudo aquilo que se vai interpretar parte da essência na perspectiva do intérprete.
A análise do que é crime contra a honra, homofobia e racismo exige o dolo necessário, ou seja, a vontade livre e consciente de realizar a conduta típica e de produzir o resultado (naturalístico ou jurídico) exigido para a caracterização do delito, não bastando a mera tipicidade formal (pura adequação da conduta ao tipo penal).
Anoto, aliás, que como já defendi em outros artigos, considerar homofobia como crime de racismo, mediante analogia “in malam partem” e por decisão judicial, sem a criação de tipo penal específico, fere o princípio da legalidade, que existe justamente para limitar o poder estatal e definir no âmbito penal o que pode ou não pode ser feito. É direito fundamental das pessoas saberem previamente quais as condutas são puníveis e as sanções aplicáveis, nos termos da lei, segundo procedimento formalmente estabelecido na Constituição Federal. Não é lícito ao Poder Judiciário criar crimes e cominar penas, o que viola, igualmente, o princípio da separação dos Poderes da República, um dos pilares do sistema democrático de direito.
Os direitos à livre manifestação do pensamento e da expressão intelectual e artística existem e constituem direito fundamental, considerados cláusula pétrea, núcleo intangível da Magna Carta, que não pode ser suprimido ou restringido nem por emenda constitucional. Por outro lado, a doutrina e jurisprudência pacíficas reconhecem que esses direitos são relativos e não podem, portanto, ser exercidos de modo a violar outros direitos, sendo a lei seu limite. Exercidos de forma desarrazoada e desproporcional podem caracterizar delitos de opinião, como os contra a honra e racismo.
Por isso, a análise do que é ilícito penal, civil e administrativo deve ser realizada caso a caso e de forma técnica, com o mínimo de impregnação da ideologia, que todas as pessoas possuem.
Por outro lado, de uma hora para outra, pelos Tribunais Superiores, surgem decisões cada vez mais dificultando as ações das polícias no combate ao crime, coincidência, ou não, alcançando notadamente o tráfico de drogas, que é tratado na atualidade como infração de pequeno potencial ofensivo, ao passo que o delito de opinião, aquele cometido por meio de escritos ou palavras, quando atinge a uma classe ou categoria de pessoas, é tratado quase como crime de sangue, de lesa-pátria, com punições absolutamente desproporcionais e inimagináveis até bem pouco tempo.
Falar o que pensa, se não for politicamente correto está a render até mesmo prisão, ao passo que traficar drogas e colocar em risco a saúde pública e a segurança das pessoas em geral, isso é besteira, não tendo essa conduta o desvalor necessário para merecer severa punição, chegando ao cúmulo de um ministro da Suprema Corte, que deveria se manifestar apenas nos autos, dizer que não mantém preso pequenos traficantes e o mula (transportador), mesmo que flagrado com centenas e até mesmo tonelada de drogas, como se não fizessem parte de um imenso mecanismo que sem eles não funcionaria.
E o conceito de pequeno traficante vem se alargando sobremaneira, de modo que abarca mesmo àquele que é flagrado, trazendo consigo e mantendo em depósito, quilos de drogas, desde que primário e de bons antecedentes.
Enfim, tempos estranhos que vivemos, que nos levam à situação de constante tensão por ter de medir o que dizer, quando dizer e para quem dizer, sob pena de ser mal- interpretado e resultar até mesmo em processo civil e criminal.
Autor: César Dario Mariano da Silva – Procurador de Justiça – MPSP. Mestre em Direito das Relações Sociais – PUC/SP. Especialista em Direito Penal – ESMP/SP. Professor e palestrante. Autor de diversas obras jurídicas, dentre elas: Comentários à Lei de Execução Penal, Manual de Direito Penal, Lei de Drogas Comentada, Estatuto do Desarmamento, Provas Ilícitas e Tutela Penal da Intimidade, publicadas pela Editora Juruá.