Ao cantar o Hino Nacional durante o comício de campanha à prefeitura de São Paulo do candidato Guilherme Boulos (PSOL), no último sábado, a intérprete Yurungai fez uma adaptação do trecho “Dos filhos deste solo” para a linguagem neutra, tão defendida pela esquerda, e cantou “Des filhes deste solo”.
Uau! Não sobrou pedra sobre pedra. A turma da direita, que sempre combateu com veemência essa tentativa de imporem goela abaixo a “linguagem inclusiva”, deitou e rolou. As pessoas ficaram indignadas e foram para as redes sociais criticar a “falta de respeito” com esse importante símbolo nacional.
O assunto ferveu
Só para dar ideia de como o assunto repercutiu, basta dizer que, de acordo com a apuração da Bites, o caso gerou 157 mil publicações nas redes sociais e as interações foram para as nuvens, literalmente, batendo 52 milhões de visualizações.
A repercussão foi tão negativa que até a esquerda resolveu fazer coro com a direita e passou a desancar o próprio ato. Boulos deve ter medido o prejuízo eleitoral e se apressou em criticar a mudança no hino e, para provar sua revolta, afirmou que não irá mais trabalhar com a produtora responsável pelos seus eventos de campanha.
O estrago já estava feito
Sem perder tempo, os responsáveis pela campanha de Boulos excluíram o vídeo de suas redes sociais. Em nota, disseram: “A campanha, em momento algum, solicitou alteração na letra do Hino Nacional interpretado na abertura do comício no último sábado”. Noves fora nada, o estrago já estava feito. O risco de perder votos foi tão grande que até Lula se manifestou.
O presidente não gostou da mudança. Embora tenha comparecido ao evento do seu pupilo político, só ficou sabendo da alteração no hino três dias depois. Comentou que o episódio foi desnecessário. A cantora, provavelmente, querendo fazer média com a ideologia de seus contratantes imaginou que essa “gracinha” seria bem-recebida.
A esquerda tentou emplacar
No início do ano passado, por exemplo, em pelo menos seis eventos do governo, a primeira-dama, alguns ministros e até o cerimonialista usaram a palavra “todes”, em vez de “todos”. Como essa é uma bandeira que defendem, a plateia vibrou com o uso desse pronome neutro.
Só que em época de campanha política, principalmente quando as pesquisas mostram que o adversário de Boulos sobe freneticamente na aceitação popular, essa mudança na linguagem pode desagradar boa parte do eleitorado. Não é hora de cutucar a fera com vara curta. E com razão, pois perfis que permanecem fora da bolha política e outros considerados de centro-esquerda também manifestaram seu desagrado.
Mudanças naturais
A língua não é estática, mas as mudanças surgem a partir do uso corrente da população. Tentar impingir alterações nas regras só para satisfazer orientações ideológicas chega a ser uma agressão. Como disse Rivarol: “A gramática é a arte de remover as dificuldades de uma língua; mas a alavanca não deve ser mais pesada que a carga”.
Importantes estudiosos são contra essa tentativa de alteração compulsória.
O renomado professor de Português, Sérgio Nogueira, por exemplo, explica que no latim, de onde vem a língua portuguesa, havia três gêneros: o masculino, o feminino e o neutro. Na língua portuguesa, o neutro foi incorporado pelo masculino, e o mestre Nogueira duvida que “esse tal de neutro” que estão querendo impor funcione.
Sem imposição
Por ser a língua um fenômeno natural, não nasce de fora para dentro, já que as regras não foram criadas para que as pessoas falem corretamente, nós é que elaboramos as regras a partir do bom uso.
Dentro da mesma linha, a doutora em Linguística Aplicada, Edna Maria Barian Perrotti, explica que “As línguas são organismos vivos e naturais, portanto, passíveis de mudanças. A partir do uso, os falantes adquirem novas palavras e abandonam outras, em um processo natural, quase inconsciente e coletivo, sem que haja nenhuma imposição”.
Talvez fique de quarentena
Ela lembra, por exemplo, que o tratamento dado nas correspondências formais era V. Sa., e que hoje não é incomum receber uma carta de uma organização financeira tratando o destinatário de você. Ressalta que essas mudanças não ocorreram de um dia para o outro, muito menos foi uma imposição.
A Dra. Edna diz que quem defende a mudança pensando numa identidade de gênero inclusiva é porque confunde gênero sexual (o homem/a mulher; o gato/a gata) com gênero gramatical, que serve para identificar não só pessoas ou animais de sexos diferentes, mas também seres inanimados, que não pertencem a nenhum gênero sexual (a casa, a roupa, o dia, o muro, o soluço, a noite, a rede, o pente).
Por essas e outras, fica claro que, com as críticas recebidas pela mudança na letra do hino, esse assunto controverso provavelmente dará uma folga e fique de quarentena. Afinal, pisaram na bole com os filhes. E es adversáries agradecem.
Reinaldo Polito é Mestre em Ciências da Comunicação e professor de Oratória nos cursos de pós-graduação em Marketing Político, Gestão de Marketing e Comunicação, Gestão Corporativa e MBA em Gestão de Marketing e Comunicação na ECA-USP. Escreveu 37 livros, com mais de 1,5 milhão de exemplares vendidos em 39 países. Siga no Instagram: @polito pelo facebook.com/reinaldopolito pergunte no https://reinaldopolito.com.br/home/