Há pouco mais de um ano foi exaustivamente noticiado na mídia em geral trecho de um vídeo em que o Senador Sérgio Moro, durante uma festa junina, fez uma evidente brincadeira citando o Ministro Gilmar Mendes, dando a entender que ele seria corrupto porque “venderia” Habeas Corpus. O Senador teria dito: “Não, isso é fiança, instituto… pra comprar um habeas corpus do Gilmar Mendes”.
Esta simples frase caracteriza crime? E qual seria?
A Procuradoria Geral da República entendeu que sim e ofereceu denúncia pelo crime de calúnia, previsto no artigo 138 do Código Penal, agravado pelo fato de ter sido divulgado pela Internet e por ser o Ministro maior de 60 anos. A pena do delito de calúnia é de seis meses a dois anos de detenção, além da multa, que receberá o aumento do triplo por ter sido a frase difundida pela Internet e, ainda, normalmente majorada de um sexto em razão da idade do ofendido.
Há basicamente três espécies de crimes contra a honra: a calúnia, a difamação e a injúria. Os dois primeiros atingem a honra objetiva do ofendido, ao passo que o último a honra subjetiva.
A honra subjetiva nada mais é do que cada um pensa de si mesmo, levando-se em consideração seus atributos físicos, morais, intelectuais e outros, concernentes à pessoa humana, ou seja, a dignidade e o decoro. Já a objetiva, é o que a sociedade pensa do sujeito, no que é pertinente a seus atributos físicos, morais, intelectuais e outros, correlatos, isto é, sua reputação.
A calúnia basicamente é a imputação falsa da prática de um crime determinado (art. 138 do CP).
A calúnia é o mais grave dos delitos contra a honra, pois é imputado a alguém não apenas o cometimento de fato ofensivo à sua reputação ou de qualidade negativa, mas a prática de fato determinado, definido na lei penal como sendo crime. Em face disso, a lei permitiu, em regra, a exceção da verdade, vez que interessa à ordem pública o esclarecimento dos fatos alegados.
A falsidade da imputação é elemento constitutivo do tipo penal (elemento normativo do tipo). Se verdadeira a imputação, não haverá a adequação típica, embora, em alguns casos, a verdade não possa ser processualmente demonstrada (§ 3º, do art. 138 do CP). Nas situações previstas nesse parágrafo a lei não permite a exceção da verdade, sendo que o agente será punido mesmo que o fato imputado for verdadeiro, uma vez que a prova da verdade não poderá ser produzida.
O dolo de caluniar exige o conhecimento da falsidade da afirmação feita ou, pelo menos, a dúvida quanto a ela, que caracterizará o dolo eventual.
O objeto da falsa imputação poderá recair sobre o fato em si (que não ocorreu) ou sobre a autoria do fato criminoso (que não foi praticado pelo ofendido, embora tenha ocorrido).
O fato atribuído deve ser definido como crime pela legislação penal vigente, não bastando a imputação de contravenção ou de ato imoral, que poderá constituir difamação (art. 139 do CP). Basta para a caracterização da calúnia a imputação suficientemente clara para individualizar um crime determinado. Exige-se, igualmente, que a imputação seja feita a pessoa certa e determinada. Exemplificando, insultar alguém chamando de ladrão não constitui calúnia, mas injúria (art. 140 do CP). Por outro lado, dizer falsamente que fulano no dia tal, às tantas horas, furtou um automóvel de tal marca, pertencente a sicrano, ensejará a calúnia.
O ânimo de narrar, de corrigir, de defender, de brincar, de criticar, ou qualquer outro que não importe na intenção de ofender a honra objetiva, exclui o elemento subjetivo do tipo e, consequentemente, a tipicidade penal. Exige-se, portanto, a finalidade especial de ofender a honra alheia (elemento subjetivo do tipo), sem a qual o fato será atípico.
A difamação, crime previsto no artigo 139 do Código Penal, nada mais é do que imputação de fato certo e determinado a pessoa física ou jurídica, que ofenda a sua reputação. A conduta atinge diretamente a imagem que a pessoa tem perante a sociedade.
Não se trata de ofensa à dignidade ou ao decoro do ofendido, que caracterizará injúria, ou da falsa imputação de fato definido como crime, que constituirá calúnia. Temos no delito em apreço a imputação de fato certo e determinado ofensivo à reputação da vítima. Exemplificando, afirmando o agente para terceira pessoa, com o intuito de ofender, que a vítima em determinado dia, horário e local foi vista por ele mantendo relacionamento sexual com outra mulher, que não a esposa, caracteriza difamação, ao passo que dizer de forma vaga que a vítima é adúltera, com intenção de ofendê-la, constitui injúria.
Não importa, em regra, se o fato é verdadeiro ou não, bastando que seja apto a denegrir a reputação que a pessoa goza, independentemente de que isso venha ocorrer (crime formal). Basta, portanto, que o agente tenha intenção de denegrir a honra objetiva alheia (elemento subjetivo do tipo).
O ânimo de narrar, de corrigir, de defender, de brincar, de criticar, ou qualquer outro que não importe na intenção de ofender a reputação, exclui o elemento subjetivo do tipo e, consequentemente, a tipicidade penal.
Em regra, a difamação não admite a exceção da verdade, pois, mesmo que o fato seja verdadeiro, não é lícito a alguém proclamá-lo aos quatro ventos. Todavia, quando se trata de ofensa relativa ao exercício funcional do funcionário público, a lei admite a exceção da verdade. Isso, porque interessa ao Estado que eventual falta funcional seja apurada para o bom desempenho da administração pública. Com efeito, provado que o fato realmente ocorreu, a tipicidade perdura, mas a ilicitude é excluída, ensejando a absolvição do agente por não ter cometido o crime.
Por fim, temos o delito de injúria, descrito no artigo 140 do Código Penal.
Diferentemente do que ocorre na calúnia e na difamação, é atingida a honra subjetiva do ofendido, ou seja, a imagem que cada um tem de si mesmo acerca de seus atributos pessoais.
A imputação é de algo vago e impreciso, como, quando alguém é chamado de “imbecil”, de “desonesto” ou de “ladrão”.
Na injúria, não há imputação de fato, mas de qualidade negativa ao ofendido.
Injuriar é ferir os atributos pessoais de alguém. A pessoa é ofendida não porque terceiro toma conhecimento da imputação, mas por essa em si mesma. O simples conhecimento por parte da vítima já é suficiente para ofendê-la.
Trata-se de crime doloso em que é exigida a especial intenção de ofender a honra subjetiva alheia (elemento subjetivo do tipo). Mesmo a brincadeira pode eventualmente atingir e ferir a dignidade ou o decoro de alguém. Todavia, se não houver a intenção de ofender, mas apenas a de brincar, de criticar, de defender etc., não ocorrerá o delito por ausência do elemento subjetivo do tipo.
Não é cabível a exceção da verdade, pois a ninguém é dado ferir a dignidade ou o decoro alheio, mesmo que a imputação seja verdadeira.
E no que concerne à brincadeira proferida pelo Senador Sérgio Moro, há delito?
Defendo que não e explicarei o porquê de forma técnica.
Todo delito de opinião deve possuir a finalidade criminosa, ou seja, de descumprir a lei de modo que se adeque a uma norma penal incriminadora que a puna, como os crimes contra a honra.
A simples crítica, debate de ideias, insatisfação com alguma coisa, intenção de corrigir, de brincar ou de se defender, não são condutas típicas penalmente.
Qualquer crime contra a honra possui o elemento subjetivo do tipo específico de caluniar, de difamar ou de injuriar pessoa determinada, não bastando a mera conduta objetiva que se adeque a um tipo penal.
Não basta, portanto, a tipicidade formal, havendo necessidade do elemento subjetivo do tipo próprio dos crimes contra a honra.
Por isso, o denominado “animus jocandi” (intenção de brincar) afasta o crime contra a honra, tornando o fato atípico. Exceção quando evidente a intenção de ofender de modo travestido de brincadeira, que está longe de ter ocorrido, tanto que dito para número reduzido de pessoas em momento festivo e de alegria.
Lembro, ainda, que a pessoa pública, como os são os ministros do STF, são mais suscetíveis a brincadeiras e de invasão da intimidade e da imagem. Aquele que se importa com meras brincadeiras e piadas não pode galgar cargo de relevo, que o colocará como vitrine, seja para o bem ou para o mal.
E ainda foi imputado na denúncia o crime de calúnia, que exige fato determinado (que configure crime) e não uma mera afirmação vaga, que, em tese, poderia caracterizar injúria, que atinge a dignidade ou o decoro da pessoa.
Injúria, aliás, é crime de pequeno potencial ofensivo, admitindo transação penal, anotando que não foi Moro quem divulgou na Internet, mas outra pessoa sem a sua autorização (ao que consta), não podendo, por isso, ser-lhe imputada a causa de aumento de pena do § 2º, do art. 141, do CP.
Referida norma dispõe que se o delito for cometido ou divulgado em quaisquer modalidades de redes sociais da rede mundial de computadores (Internet), devido à sua enorme amplitude e alcance, a pena será triplicada.
Nesta hipótese, o dano ao bem jurídico tutelado (honra objetiva ou subjetiva) é muito maior, uma vez que em instantes todas as partes do globo poderão ter acesso ao que foi divulgado e será quase impossível sua reparação.
O correto, no meu modesto entender, seria a rejeição da denúncia ou, ao menos, a desclassificação da infração para o delito de injúria (que para mim não ocorreu), o que possibilitaria a transação penal.
A injúria consistiria na menção, de forma indireta, de que o Ministro seria corrupto ao “vender” Habeas Corpus, o que não se trata de fato determinado, mas de imputação de qualidade negativa, que fere a honra subjetiva do ofendido (dignidade e decoro).
Isso sem contar que, havendo confissão, cabe acordo de não persecução penal e, recebida a denúncia, suspensão condicional do processo no caso de reconhecimento da injúria ou afastamento da majorante de divulgação pela Internet.
Aliás, no que tange a crimes cometidos por Parlamentar (Deputado Federal e Senador), o Supremo Tribunal Federal restringiu a prerrogativa de foro, limitando-a aos delitos cometidos no exercício do mandato e em razão das funções desempenhadas (crimes funcionais), excluindo os demais, que deverão ser julgados de acordo com a regra geral de competência[1]. O fundamento da alteração jurisprudencial, segundo o relator, é: “Para assegurar que a prerrogativa de foro sirva ao seu papel constitucional de garantir o livre exercício das funções – e não ao fim ilegítimo de assegurar impunidade – é indispensável que haja relação de causalidade entre o crime imputado e o exercício do cargo. A experiência e as estatísticas revelam a manifesta disfuncionalidade do sistema, causando indignação à sociedade e trazendo desprestígio para o Supremo”.
Portanto, quanto a esta imputação feita a um Senador da República, sem qualquer pertinência com o exercício de suas funções parlamentares, não é o Supremo Tribunal Federal o juízo competente para o processamento da ação, que deverá tramitar em primeiro grau, de acordo com a regra geral de competência.
Enfim, com o devido respeito, além de não ser a Excelsa Corte o juízo competente para o trâmite processual, não vislumbro justa causa para o recebimento da denúncia (nem por calúnia e nem por injúria) e muito menos fundamento legal para a condenação.