“A tolerância chegará a tal nível que pessoas inteligentes serão proibidas de pensar para não ofender os imbecis.” (Dostoiévski)
Vivemos o apagão do senso moral. Este apagão destrói a ética e fragiliza nossos alicerces civilizatórios.
O fenômeno não é gratuito. Tem causa e método. Visa destruir o tecido social e romper os valores que alicerçam o Ocidente e a democracia pluralista.
A perda dos valores, a destruição da sociedade e o niilismo que nos contamina constituem o objetivo e a razão de ser do ideologismo identitário e do populismo cultural liberticida.
O “politicamente correto”, o “ativismo judicial”, o “racialismo”, o “supremacismo vitimista”, o “biocentrismo”, a “ideologia de gênero”, a “hegemonia dos ofendidos”, dentre outras “bandeiras de luta”, denominadas como doutrina woke ou manifestação identitária, contribuem para o progressivo esgarçamento da ordem e a perda de valores. Cultivam o rancor e miram, sobretudo, o MÉRITO.
Ter mérito é ofensivo. Possuir valores morais é criminoso. Compreender o que é normalidade é perigoso.
O drama psicossocial, a luta contra o preconceito, a defesa da liberdade de expressão ou dos direitos individuais, para os patrocinadores da era dos ressentidos, nunca foram o objeto do conflito por eles protagonizado. O foco, de fato, sempre foi a disrupção do tecido social.
Configuram todos, militantes de causas identitárias, wokers, ideólogos de gênero etc., partes de uma mesma postura niilista, destruidora e letal.
A praga do Niilismo
O niilismo contaminou o raciocínio filosófico no século XIX e assumiu a vanguarda do processo de desconstrução da MORAL judaico-cristã ocidental, base da nossa sociedade no século XX e neste início do século XXI.
Esse “vanguardismo” tem no polêmico filósofo Nietzsche um paradigma. Em Nietzsche, o niilismo não é opção, mas um processo. Um estado decorrente do próprio processo histórico.
A “transvaloração de todos os valores”, para Nietzsche, é o derradeiro objetivo do niilismo.
Niilista é aquele que considera infundados todos os valores e crenças, não havendo qualquer sentido ou utilidade na sua existência.
Assim, para Nietzsche, a missão da nova moral consistiria na “transvaloração de todos os valores, em um desprender-se de todos os valores morais, e um confiar e dizer sim a tudo o que até aqui foi proibido, desprezado, maldito”.
Nietzsche propunha a transvaloração por entender que não se podia confiar nos conceitos de moral tradicionalmente recebidos, “impostos pela ordem dominante” (judaico-cristã). A transvaloração seria, assim, o questionamento dos valores – supondo-os transmitidos como absolutos.
Em “Genealogia da Moral: Uma Polêmica”, o filósofo alemão afirma: “não vejo ninguém que tenha ousado fazer uma crítica dos juízos de valores morais”. “Até o momento ninguém examinou o valor da mais famosa das medicinas chamada moral”. “Esse é justamente nosso projeto”.
Pura pretensão! Nietzsche imaginava diferir, mas não diferia em nada dos demais filósofos vanguardistas, dos contestatários de sua época e dos “reféns da vanguarda” que a ele se seguiram.
Do Anarquismo ao Nazifascismo, da Comuna de Paris à Escola de Frankfurt; Marx, Nietzsche, Schumpeter, Sartre e Marcuse ganham a mesma coloração parda, indefinida, em prol da “destruição criativa”, como condição para se alcançar o paraíso platônico.
“Eis o que devemos almejar: a crítica implacável de tudo quanto existe. Digo implacável em dois sentidos: a crítica não deve temer suas próprias conclusões, nem o conflito com os poderes a que se dirige”, escrevera Karl Marx a um amigo em 1843, cinco anos antes do “Manifesto Comunista”.
A arte de dizer o certo… visando aplicá-lo de forma errada…
Marx também não era original. Copiava (e mal) o que pregava a maçonaria italiana em 1822, no auge de sua batalha revolucionária contra a Igreja Católica, em prol do Estado Laico: “Para propagar a luz, é conveniente e útil dar impulso a tudo aquilo que proporciona a mudança. O essencial é isolar o homem de sua família, fazê-lo perder sua moral.”
A fantástica produção intelectual protagonizada por Marx, Nietzsche e demais filósofos, que devemos festejar em nome da liberdade de expressão e pensamento crítico, não significa que devamos nos abster de também absorver as ideias com o devido filtro crítico por nós desenvolvido – e analisarmos a praxis, hipotética ou não, das ideias, na estrutura social que nos mantém.
Assim, não há dúvida: esse movimento liberticida – como um câncer, sempre buscou destruir o tecido social e desconstruir todos os organismos plurais e democráticos.
A própria busca do vanguardismo, inserida neste movimento disruptivo, já despe o intelecto social da cultura adquirida… em direção ao vazio. O resultado é a miséria social.
Na ebulição de novas ideias e constatações revolucionárias que marcaram o século XIX, o vanguardismo terminou por condicionar a mudança das estruturas econômicas, sociais e políticas à adoção de uma postura niilista. Foi assim que o vanguardismo niilista contaminou a filosofia no século XIX, orientou o radicalismo político no século XX e parece estar formatando o caráter “ressentido”, cínico e hipócrita das relações de Estado no século XXI.
O niilismo, definitivamente, é uma praga na formação do homem moderno e um câncer que corrói a civilização.
O niilismo e os transviados
Graças ao bom Deus, essa doença vanguardista-niilista da transvaloração de todos os valores não contaminou cabeças iluminadas que, ao fim e ao cabo, em vários momentos dos últimos duzentos anos, trataram de “por a casa em ordem” e denunciar o caráter desumano e liberticida do fenômeno.
É o caso do maior filósofo do século XX, Karl Popper, que observou, em primeiro lugar, o fato de a instauração de regimes “salvadores” sempre exigir a selvageria de um movimento revolucionário para reformar toda a ordem existente “sem deixar pedra por virar”.
Popper identificou a origem enviesada deste vanguardismo destruidor “de tudo o que está aí”: Platão e sua engenharia social utópica de República – um convite ao totalitarismo.
Essa engenharia social platônica em prol da utopia, visando “recriar” o ser humano, gerou todas as aberrações que custaram milhões de vidas no século XX. Platão, reformatado, influenciou a formulação das visões niilistas que inspiraram os regimes totalitários e marcaram os conflitos mundiais.
“Tanto Platão quanto Marx sonharam com uma revolução apocalíptica que transfiguraria radicalmente todo o mundo social”, afirmou Popper em “A Sociedade Aberta e Seus Inimigos”.
Utopias à parte, a experiência de vida e o inafastável conhecimento da história revelam: Sem valores, a personalidade desaba.
A interseccionalidade e as bolhas
Em 1989, quando foi usado pela jurista e professora afro-americana Kimberlé Crenshaw, o termo interseccionalidade visava nominar o conceito de interrelação entre desigualdades e discriminações sofridas por mulheres e populações – uma interação de fatores sociais que definem a pessoa, tornando-a alvo de discriminações diversas.
A interação buscada por Crenshaw definia a barreira geopolítica e socioeconômica enfrentada pelas mulheres negras nos Estados Unidos. Porém, o conceito foi apropriado pelos globalistas, visando criar “bolhas vitimistas” – uma espécie de zona de conforto psicossocial que manipula dados e informações visando tornar hegemônico o discurso disruptivo identitário. Importante anotar que a estratégia globalista visa a “mesmerização” das populações – daí o uso da via niilista para transvalorar e destruir o mérito, formando indivíduos “desnorteados”, “desmotivados” e “temerosos” de expor opiniões divergentes.
É óbvio que a interseção entre trabalho e renda, sexualidade, etnia, geolocalização, religiosidade ou idade combinam-se de diferentes formas, gerando situações vantajosas ou desvantagens gritantes.
No entanto, seguindo o rumo do direito e da tutela de interesses difusos, vale o conceito do Professor Goffredo Telles: “onde há fracos e fortes, a liberdade escraviza; o direito liberta”. Ou seja, as diferenças devem ser tratadas de per si – caso contrário, poderão gerar novas desigualdades e causar profundas injustiças.
No caso da disrupção em prol das bolhas de manipulação vitimista, a “normalização” de condutas antisociais pode contaminar o meio com psicopatias comportamentais graves. Por isso, o discurso interseccionalizante não pode servir para, por exemplo, misturar vítimas de conflitos geopolíticos, relacionados à migração forçada, com vítimas do próprio contexto social local ou nacional.
A interseccionalidade, quando mal aplicada, pode fomentar a multiplicação de privilégios e marginalizações dentro de grupos já desigualados. As “bolhas” criadas pelo globalismo identitário podem transformar um avanço social em um retrocesso — promovendo injustiças e desigualdades dentro do próprio sistema de justiça social que pretende resolver.