A recente tragédia no Rio de Janeiro, com dezenas de mortos em mais uma operação policial, expôs novamente a ferida aberta da violência no Brasil. Não se trata de um episódio isolado, mas da repetição de um padrão que se arrasta há décadas, revelando o fracasso de uma política de segurança centrada na repressão, e não na prevenção.
Como ensinava o sociólogo francês Émile Durkheim, o crime é um fato social, não um desvio individual. Ele surge quando há falhas na integração entre os indivíduos e a coletividade. Nas periferias e favelas, onde o Estado é ausente, a desigualdade e o abandono criam um terreno fértil para o avanço de facções e milícias, que oferecem o que o poder público nega: renda, pertencimento e segurança.
O filósofo Michel Foucault já alertava que a punição deve ser instrumento de reeducação e não apenas de repressão. Quando o Estado transforma o poder punitivo em política permanente, abandona a lógica da justiça e reforça o ciclo de exclusão e violência. E é precisamente o que vemos nas operações de alta letalidade, em que a morte se torna rotina e a vida, uma estatística.
Hannah Arendt, ao analisar a banalização do mal, ensinou que a violência se torna cotidiana quando o Estado falha em proteger a dignidade humana. Cada morte em uma operação policial sem controle representa mais que uma tragédia individual: é um sintoma da erosão moral e institucional do país.
As críticas da Organização das Nações Unidas e da Human Rights Watch à letalidade policial brasileira não são novas. Elas denunciam a falta de políticas públicas preventivas e de estratégias baseadas em inteligência e tecnologia. O modelo de segurança que aposta na força bruta fracassou. É hora de admitir que combater o crime organizado exige mais do que armas e batalhões: exige educação, geração de emprego, políticas de inclusão e reconstrução da confiança entre a população e as instituições.
Mas é igualmente necessário que as forças do Estado se modernizem, adotando uma abordagem inteligente e integrada para desmontar as estruturas que sustentam o crime organizado. Não basta reagir com operações reativas; é preciso investir em inteligência preventiva e no rastreamento sistemático do fluxo de recursos que financiam essas organizações, clássico “follow the money”. O combate financeiro ao crime, por meio de unidades de inteligência patrimonial, congelamento de bens, investigação de lavagem de dinheiro e cooperação transnacional, atinge o coração logístico e econômico das facções.
Tecnologia e monitoramento não substituem garantias legais e controles civis, mas ampliam a capacidade do Estado de agir com precisão. Análise de dados, integração de bases entre segurança pública, Receita Federal, bancos e agências de inteligência, uso responsável de metadados e ferramentas de georreferenciamento, além de auditorias forenses, permitem identificar redes, rotas de recursos e estruturas de financiamento. Quando bem empregadas, essas ferramentas reduzem a necessidade de confrontos violentos e aumentam a chance de prisões qualificados e de decisões judiciais sustentadas por provas robustas.
Além disso, operações bem-sucedidas dependem de coordenação interinstitucional e de instrumentos que garantam transparência e fiscalização. O enfrentamento ao crime organizado deve combinar investigação financeira, inteligência policial e políticas públicas de prevenção. Ferramentas de monitoramento devem estar ancoradas em garantias democráticas, em protocolos de proteção de direitos humanos e em mecanismos que evitem abusos. Só assim a ação do Estado recupera legitimidade diante das populações afetadas.
Como disse Darcy Ribeiro, “a crise da educação no Brasil não é uma crise, é um projeto”. E enquanto esse projeto seguir ativo, o da exclusão e do esquecimento, o país continuará a produzir violência como subproduto da desigualdade.
Zygmunt Bauman lembrava que a insegurança é filha direta da desigualdade social. Um Estado que não garante oportunidades, justiça e esperança não pode esperar paz.
Combater a violência no Rio e no Brasil exige, portanto, um duplo movimento: reverter o abandono social que gera a criminalidade e modernizar o aparelho de Estado para atacá-la onde mais dói, nas finanças e na logística. A paz duradoura não virá apenas do confronto tático, mas da conjugação entre inteligência, fiscalização financeira, inclusão social e o respeito irrestrito à dignidade da pessoa humana.
É preciso romper o ciclo da barbárie e reconstruir o pacto civilizatório. A paz não virá do cano de uma arma, mas da coragem política de reeducar o país, de seguir o rastro do dinheiro e de desmontar, por inteiro, as engrenagens que alimentam a violência.










