O julgamento dos acusados de tentativa de golpe de Estado, em curso no Supremo Tribunal Federal (STF), desperta questões complexas e preocupantes relacionadas à violação do art. 102 da Constituição, provocada pelos processos em andamento.
Ressalvadas as exceções, o nosso Poder Judiciário tem pouco apreço pela Lei Constitucional. Estamos na oitava, a única, por sinal, que não foi filha de golpe de Estado, ao contrário do que se deu com as de 1824, 1891, 1934, 1937, 1946, 1967 e 1969, abatidas por movimentos armados, ou contando com a cumplicidade das Forças Armadas.
A Constituição em vigor foi discutida e aprovada por deputados e senadores investidos de poder constituinte, por iniciativa do presidente José Sarney, o vice-presidente convertido em presidente pela morte do dr. Tancredo Neves. Ambos haviam sido eleitos indiretamente pelo Colégio Eleitoral previsto na Constituição de 1969 (EC nº 1 à Constituição de 1967), promulgada pelo triunvirato militar que tomou o poder com a doença e morte do presidente Costa e Silva.
Convertido em Constituinte, após dois anos de trabalho sob a presidência do Dr. Ulysses Guimarães o Poder Legislativo produziu colossal obra de ficção com o objetivo de remodelar o Brasil, alheia, contudo, à nossa cruel realidade.
Aqueles que já se deram ao trabalho de ler o texto da Lei Fundamental, certamente haverão de reconhecer que se trata de algo prolixo e ininteligível, de má qualidade técnica, sob constantes alterações, desafiador do talento de professores de Direito Constitucional, incapazes de infundirem nos alunos curiosidade, respeito e amor pela Lei das Leis.
Somente a fragilidade constitucional poderia explicar como os processos em curso no Supremo, contra vários acusados de articulação de golpe de Estado, passaram longe dos juízes federais de primeiro grau, competentes para julgarem crimes políticos (art. 109, IV), dos Tribunais Regionais Federais, do Superior Tribunal de Justiça, para desaguarem diretamente no Supremo Tribunal Federal, ignorando os limites traçados pelo artigo 102.
Leiam o referido dispositivo com atenção, e observarão que se trata de norma destinada a limitar a Suprema Corte a exercer, precipuamente (como diz o texto), a guarda da Constituição. Apenas em situações específicas, conforme reza o texto, cabe-lhe processar e julgar originariamente, como no caso da ação direta de inconstitucionalidade, e, nas infrações penais comuns consumadas, o Presidente da República, o Vice-Presidente, os membros do Congresso Nacional, seus próprios Ministros e o Procurador-Geral da República.
O julgamento de crime político também é atribuição do Supremo, mas em grau de recurso ordinário, conforme reza o mesmo art. 102, inciso II, letra b.
Encerrados os mandatos, o ex-presidente da República, o ex-vice-presidente, ex-ministros de Estado, voltam a ser cidadãos comuns, sem direito ao foro privilegiado,
Quem se deu ao trabalho de ouvir o libelo do Procurador Geral da República, e as sustentações orais dos advogados de defesa, deve ter chegado à melancólica conclusão de que todos os esforços eram inúteis. Ao embolar uma dezena de réus em um único processo, o Relator, Ministro Alexandre Moraes, tornou impossível a produção de defesas objetivas, claras e compreensíveis, mesmo para experientes advogados.
Escreveu o jurista Pablo Luca Verdu que “La prolixidade de una Constituición se paga al precio de la dificultad de su interpretación, la dificultad de sua interpretación con el fracaso de su aplicación” (Curso de Derecho Politico, Editorial Tecnos, Madrid, vol.II, pág. 440). O processo em curso no STF atesta o fracasso da aplicação do texto constitucional, quando mais necessário se mostrou. Fossem os acusados submetidos a juízes federais de primeiro grau nenhum prejuízo haveria, e o País não se encontraria ideologicamente dividido entre lulistas e bolsonaristas, tendo como epicentro da disputa o STF e o ministro Alexandre Moraes.
Sobre as acusações de tentativa de golpe, me vem à lembrança a clássica obra Técnica do Golpe de Estado, de Curzio Malaparte (Kurt Erick Suckert – 1898-1957), escritor, jornalista, dramaturgo, cineasta, militar e diplomata). O primeiro parágrafo do livro diz: “Se o estrategista da revolução bolchevista é Lenin, o tático do Golpe de Estado de outubro (de 1917) é Trotski”. Ao dissecar a tática empregada no golpe comunista para a tomada do poder na velha Rússia, Curzio Malaparte não foi capaz de ensinar como massa desorganizada é capaz de derrubar governo, sem comandantes e sem reduzido punhado de revolucionários armados.
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Advogado. Foi Ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho. Membro da Academia Brasileira de Direito do Trabalho e fundador da Academia Paulista de Direito do Trabalho (Titular da Cadeira nº 1).