A falência da previdência social e a urgência de uma nova base de financiamento
Este artigo busca provocar uma reflexão sobre a proposta de uma nova base para financiar a nossa previdência social baseado em uma contribuição financeira que pode potencialmente reduzir ou eliminar os descontos no salário do trabalhador e nas empresas.
É necessário compreender a magnitude da crise na nossa atual previdência – o déficit apenas nas contas do RGPS em 2023 alcançou surpreendentes R$ 283 bilhões e pode superar R$ 300 bilhões me 2024. O regime de aposentadoria rural, que atende quase 10 milhões de pessoas (cerca de um quarto de homens acima de 60 anos e de mulheres acima de 55 anos) absorve 1,60% do PIB, sem praticamente qualquer cobertura financeira específica. O déficit atuarial dos funcionalismo público brasileiro atinge a inacreditável quantia de R$ 6 trilhões, ou mais de 90% da dívida pública líquida do país. E enquanto isto tudo ocorre, a generosidade política brasileira permite que os gastos previdenciários entre 1980 e 2022 tenham crescido 3,9% ao ano, ao passo que o crescimento da população tenha sido de apenas 1,3%, segundo o Observatório de Política Fiscal do IBRE/FGV.
Diante dessa realidade alarmante, evidencia-se a urgência em adotar medidas corretivas efetivas.
O Brasil é conhecido por sua alta carga tributária sobre os trabalhadores formalizados, causando dois problemas principais: a substituição dos trabalhadores por métodos poupadores de mão de obra e o aumento da informalidade.
A previdência social constitui uma segurança essencial para cidadãos que perdem sua capacidade de trabalhar, exigindo a decisão entre um sistema de repartição (pay as you go) ou de capitalização(contas individualizadas).
O regime de repartição vigente no Brasil continua sendo a opção mais viável (dados os custos astronômicas de migração para o regime de capitalização) e melhor do ponto de vista distributivo, garantindo benefícios a todos os cidadãos, independentemente de eventuais déficits ou de estrita correspondência com contribuições individuais. Por ser fundamentalmente uma opção de política pública e não uma escolha de seguro individual, os custos do INSS devem ser arcados por toda a sociedade, e não apenas pelos integrantes do mercado de trabalho, como aliás já previsto na Constituição brasileira. Essa relação pública é legalmente reconhecida no Brasil, transformando a previdência em um componente-chave na complementação de renda dos cidadãos, diferentemente do conceito de seguro individual.
Para financiar esse regime, as receitas gerais (impostos) ou contribuições são fundamentais: no primeiro caso estabelecendo uma ligação entre a sociedade como um todo e a previdência ( como no caso de financiamento com impostos), e no segundo, entre setores específicos da sociedade e a previdência mediante vinculação de recursos (como no caso de contribuições). Ademais, como não se cansa de dizer Fernando Resende, não faz sentido a existência do orçamento da seguridade, visto haver a obrigatoriedade de cobertura de seus eventuais déficits com recursos do orçamento da União, o que pressiona da vez mais fortemente os gastos discricionários , inclusive investimentos públicos, que já são mínimos.
Dado esse quadro, agora nos deparamos com um dilema: o financiamento deve ser balizado pelos tributos (não necessariamente contribuições) do tipo IVA (valor agregado) ou “turnover” (cumulativos)? Independentemente do caminho que decidirmos seguir, existem prós e contras em cada abordagem que devem ser cuidadosamente avaliados para garantir a solvência do sistema previdenciário.
Em meio à emergente e assustadora crise previdenciária brasileira, novas formas de financiamento do RGPS e dos demais regimes devem ser avaliadas.
Do ponto de vista macroeconômico, é aconselhável que o financiamento do sistema não dependa da folha de pagamento das empresas por razões já sobejamente conhecidas, principalmente a expansão das novas formas de contratos de trabalho independente e da própria digitalização da produção. A desoneração do trabalho é medida para evitar a crescente informalização do mercado de laboral e, consequentemente, o enfraquecimento das fontes de financiamento da previdência social.
Diante disso, sugere-se a taxação sobre o faturamento das empresas (como a Cofins) ou sobre a movimentação financeira (como foi o IPMF/CPMF) ao invés dos salários dos trabalhadores. Essa abordagem visa ajustar a receita previdenciária aos seus custos e distribuir a carga tributária especialmente para aqueles que atualmente trabalham na informalidade. Mudar o fato gerador das contribuições sociais ao INSS para o faturamento, lucro ou movimentação financeira é uma possibilidade.
O lucro é uma base já tributada excessivamente no Brasil (34% com a CSLL). Portanto, a análise fica restrita à escolha entre a base de faturamento e a base de movimentação financeira (não há nem como cogitar de uma sobretaxa sobre o IBS/CBS que já atinge previsões elevadas). Ambos são cumulativos e proporcionam vantagens e desvantagens do ponto de vista da alocação, distribuição, economia e simplicidade.
A base “faturamento” (do tipo da Cofins) representa o pior dos dois mundos, já que incorpora as desvantagens das bases declaratórias (complexidade burocrática, altos custos, e estímulo à evasão e à sonegação) com os inconvenientes das bases cumulativas (adaptações para viabilizarem a adoção plena do princípio do destino no comércio externo, e redução da capacidade de estabelecer discricionariedade tributária).
Portanto, a movimentação financeira, apesar de cumulativa é mais favorável, pois amplia a base de contribuintes, elimina a evasão, simplifica a arrecadação, reduz custos de produção e carga tributária, principalmente nos setores intensivos em mão de obra.
Esta abordagem contribuiria para estimular a demanda por trabalho e a formalização das relações trabalhistas, combatendo o desemprego, e ampliando a taxa de participação, Também permitiria a redução dos custos tributários do trabalho, abrindo espaço para a redução dos custos alívio nos índices de preços.
Por fim, desonerar a folha de pagamentos permitiria aumentar a competitividade dos produtos brasileiros frente a seus concorrentes externos, substituindo um tributo não desonerável nas exportações (a contribuição patronal ao INSS) por um que permite desoneração (o imposto indireto sobre movimentação financeira)., que favoreceria as exportações e proporcionaria condições mais justas de concorrência com importações.
Bases tributárias cumulativas são comuns em todos os sistemas tributários, particularmente no brasileiro. Tributos cumulativos, bem como os de valor agregado, possuem vantagens e desvantagens do ponto de vista alocativo, distributivo, de economicidade e de simplicidade.
Nas circunstâncias brasileiras, os tributos cumulativos, já testados no país sem demonstrar grandes inconvenientes dada sua baixa alíquota, possuem uma relação custo-benefício mais favorável, o que justifica a opção de desoneração da folha de salários das empresas e a transferência do fato gerador da contribuição social da base salarial para a movimentação financeira.
Marcos Cintra é economista