Logo após ser alvo de operação deflagrada pela Polícia Federal (PF) e que resultou em buscas e apreensões em endereços de diversos aliados e na apreensão de seu passaporte, o ex-presidente da República Jair Bolsonaro (PL) convocou um grande ato, na avenida Paulista, para 25/2 (domingo). Suas afirmações, públicas e disseminadas via redes sociais e aplicativos de mensagens, dão conta de que será apenas um evento em defesa ao político e em defesa do Brasil.
Mas a verdade é que, fica difícil defender Bolsonaro sem criticar a decisão que desencadeou a operação e os próprios atos da PF. Embora seja livre o direito de reunião e de manifestação de pensamento no Brasil, eles encontram limites bem delineados pela Constituição Federal, que protege o regime democrático, os poderes da República e seus representantes. Já o sagrado direito de defesa comumente é exercido no processo judicial – no qual o ex-presidente da República não acredita, segundo suas insinuações e opiniões.
A vida pregressa de Bolsonaro e de seus aliados, assim como os apoios que o evento de 25/2 vem recebendo, como, por exemplo, o de Silas Malafaia, um dos críticos mais fervorosos ao Supremo Tribunal Federal (STF) e de seus ministros, e que vem, há tempos, incitando seus simpatizantes contra a Corte, traz a fundada suspeita do desvio do ato para um encontro político e antidemocrático, com direito à repetição de ataques a instituições e à própria democracia brasileira.
Atos como o que está para acontecer, dentro dos próximos dias, no coração de São Paulo, têm consequências imprevisíveis, não apenas pela dificuldade no controle das falas dos oradores, mas, principalmente, pela imprevisibilidade do comportamento do público presente. A despeito disso, não pode haver censura prévia a reuniões e manifestações de pensamento – que fique consignado, apesar das reservas naturais que os mais desconfiados têm em relação à promoção do encontro.
Neste prisma e sob o ponto de vista das autoridades públicas de alto escalão, como senadores, deputados federais e estaduais, governadores, secretários de Estado e municipais, bem como prefeitos que vêm confirmando presenças no evento, assim como pré-candidatos que, por óbvio, buscam auferir dividendos eleitorais, os riscos de participação são muitos e graves.
Porque, é aquele negócio: ainda que haja certa distinção entre o mandatário e o cidadão, autoridades públicas não podem, em tese e segundo o que prevê o ordenamento jurídico, participar de atos potencialmente antidemocráticos, uma vez que isso viola diretamente os deveres dos respectivos cargos. A presença em 25/2 pode, inclusive, a depender da gravidade, acarretar risco de Impeachment para este público.
Todas as autoridades públicas juram, ao tomar posse, respeitar a Constituição Federal e as leis brasileiras. Quem desrespeita esse dever inerente ao cargo que ocupa está sujeito à responsabilização, por não agir com decoro na função.
A lei 1.079, de 10 de abril de 1950, tipifica diversos crimes de responsabilidade, entre os quais atentar contra à Constituição Federal e contra o livre exercício do Poder Judiciário (artigo 4º, inciso 2); atentar contra a segurança interna do País (artigo 4º, inciso 4); atentar contra o cumprimento das decisões judiciárias (artigo 4º, inciso 8); opor-se diretamente e por fatos ao livre exercício do Poder Judiciário, ou obstar, por meios violentos, ao efeito dos seus atos, mandados ou sentenças (artigo 6º, inciso 5); usar de violência ou ameaça, para constranger juiz, ou jurado, a proferir ou deixar de proferir ou deixar de proferir despacho sentença ou voto, ou a fazer ou deixar de fazer ato do seu ofício (artigo 6º, inciso 6); tentar mudar por violência a forma de governo da República (artigo 8º, inciso 1); e praticar ou concorrer para que se perpetre qualquer dos crimes contra a segurança interna, definidos na legislação penal (artigo 8º, inciso 4).
O artigo 74 desta lei permite, expressamente, o enquadramento, na teoria, em todos os crimes descritos acima de governadores e de seus secretários de Estado, caso compareçam ao ato de domingo e que o mesmo abarque ações pouco republicanas e antidemocráticas, com o desvirtuamento do evento e a prática de atos violentos contrários ao Poder Judiciário e ao cumprimento de suas decisões. Se esse pior cenário se confirmar, estarão as autoridades presentes sujeitas à responsabilização.
Pré-candidatos no próximo pleito, também se arriscam, caso marquem presença no evento organizado por Bolsonaro e por Malafaia – no melhor estilo promoter. Até porque não se sabe exatamente quem está financiando o ato. Haverá uso de dinheiro de igrejas? Haverá uso de recursos de empresas? E, não menos importante: se ocorrer qualquer tipo de apoio expresso a pré-candidato nas eleições municipais de 2024, acompanhado de pedido direto de votos, dito e feito – estará configurada a propaganda antecipada.
O custo de organização de um evento desta natureza não é baixo e envolve recursos públicos, incluindo a mobilização da Polícia Militar (PM), para promover a segurança do público e das autoridades que ali estarão. Certamente, muitas delas farão seus deslocamentos para o local mediante, ainda, o uso de assessores, de veículos automotores, de seguranças e de policiais – todos servidores pagos com dinheiro público.
Não custa lembrar que se encontra hoje, em trâmite final no Tribunal Regional Eleitoral (TRE) do Paraná, ação de investigação judicial eleitoral, que poderá resultar na cassação de senador da República do ex-juiz Sergio Moro (Podemos), acusado de ter queimado a largada, realizando despesas, na pré-campanha, típicas do período de propaganda eleitoral.
Comícios são meios de propaganda eleitoral que só podem ser utilizados a partir de 16 de agosto. Assim, a possibilidade de desnaturação do evento, convocado para 25/2, para comício, com direito a apoios, pedidos direto de votos e elogios aos pré-candidatos nele presentes, é um risco concreto!
Se isso acontecer, as investigações judiciais eleitorais já estão bem delineadas, com possibilidade real de cassação dos registros das candidaturas de todos os beneficiários do ato de propaganda eleitoral antecipada, custeado, em parte, com recursos públicos, como já explicado nas linhas acima, configurando, em tese, o abuso do poder econômico e político.
A certeza de comparecimento de grande número de eleitores traz gravidade e potencialidade a converter a propaganda antecipada, eventualmente ali praticada, em abuso, com risco concreto de cassação dos pré-candidatos beneficiários, muitos dos quais também explorarão os discursos ali proferidos em suas redes sociais, em transmissões ao vivo e postagens, e em suas pré-campanhas. E mais: se empresas e igrejas contribuírem com a agenda, financiando, a gravidade, sob o ponto de vista eleitoral, é ainda maior.
Importante ressaltar que, quaisquer candidatos beneficiários de propaganda antecipada, paga com recursos de fonte vedada e que atinja grande número de eleitores, estão sujeitos a ações de investigação judicial eleitoral, por abuso do poder econômico e, eventualmente, religioso. Nesse sentido, é imperioso considerar que a convocação do ato de 25/2 está ocorrendo dentro de igrejas, sobretudo nas evangélicas, e por todos os meios que elas dispõem.
As incertezas e os riscos legais do evento convocado por Bolsonaro são muitos e quem marcar presença e fizer uso do microfone não poderá dizer que foi um mero convidado. Não há espaço, nesta situação, para desavisados ou ingênuos. Quem comparecer ao ato na Paulista, no domingo próximo, sem dúvida, assumirá riscos e as consequências de eventuais abusos.
Arthur Rollo é advogado; doutor e mestre em Direito, pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo; especialista em Direito Administrativo (Público); professor de Direito Eleitoral de Cursos de Graduação e de Pós-Graduação; e coordenador e coautor do livro “Eleições – o que mudou (Editora Foco)