Jurista, jornalista, escritor e filósofo, Clóvis Beviláqua, cearense de Viçosa, foi o principal redator do primeiro Código Civil Brasileiro, a primeira lei a grafar o nome do país com “s”. Discutido durante anos e promulgado em 1917, permaneceu em vigor até sua substituição pelo novo Código de Processo Civil, em 2002. Enquanto o antigo código regulava direitos e deveres de ordem privada e guardava uma certa influência do direito francês, o novo teve origem no regime militar no final dos anos 60, quando o governo criou uma comissão chefiada pelo jurista Miguel Reale para elaborar a nova lei.
O conflito de interesse em uma decisão judicial ocorre quando a necessidade de um julgamento imparcial colide com eventuais interesses pessoais ou privados de um juiz. Esse conflito compromete a credibilidade do Poder Judiciário e abala gravemente a confiança da sociedade na Justiça. Para garantir a imparcialidade nos julgamentos das ações e afastar o juíz de um caso, na época o ordenamento jurídico brasileiro estabeleceu dois mecanismos importantes no CPC: o impedimento e a suspeição.
Conflito
Considerado a causa mais grave de parcialidade, o impedimento está previsto no Art. 144 do CPC e artigos correspondentes no Código de Processo Penal (CPP), e fica caracterizado quando o juiz tem uma ligação objetiva com o processo que inviabiliza sua atuação. A parcialidade é presumida neste caso e o juiz deve declarar-se impedido de oficiar. Entre as situações possíveis que podem gerar o impedimento do juíz estão sua eventual atuação no caso como advogado ou membro do Ministério Público; ser parte no processo ou parente próximo de uma das partes; ter atuado como testemunha ou prestado depoimento como parte.
A suspeição é uma situação menos evidente de parcialidade no julgamento, sendo regulada pelos Art. 145 do CPC e 254 do CPP: Nestes casos, a suspeição do juiz pode ser questionada em função de laços subjetivos ou emocionais com as partes ou com o objeto do processo.
Ao contrário do impedimento, a suspeição não é considerada uma presunção absoluta e a parte interessada deve argui-la caso o próprio juiz não se declare suspeito. Algumas situações que configuram suspeição do juiz: ser amigo íntimo ou inimigo declarado de qualquer uma das partes ou de seus advogados; aconselhar qualquer parte sobre o objeto da causa ou ter interesse no julgamento do processo em favor de uma delas.
Nulidade
Importante destacar que se o juiz não se declarar impedido ou suspeito no julgamento de um caso, a parte que se sentir prejudicada pode levantar a questão através de um incidente processual (arguição de impedimento ou suspeição). Caso o conflito de interesse seja comprovado, a decisão judicial é declarada nula e perde validade por não ter sido proferida por um juiz imparcial.
Ação em família
Em agosto de 2023 a Associação dos Magistrados Brasileiros entrou com uma ação (ADI 5953) no STF arguindo a inconstitucionalidade do inciso VIII do Art. 144 do CPC, que ampliava o impedimento de juízes para julgar processos em que uma das partes fosse cliente de um escritório de advocacia do cônjuge ou parente do magistrado. No julgamento, a maioria do STF (7 votos a 4) aprovou a ação da AMB e alterou o entendimento a respeito.
Contrários à mudança, os ministros Edson Fachin, Rosa Weber, Carmen Lücia e Roberto Barroso defenderam uma posição comum: aquela regra do CPC garantia a imparcialidade da decisão do magistrado, evitando conflitos de interesse e favorecimentos.
Entre os defensores, Gilmar Mendes destacou a dificuldade do juiz em verificar a carteira de clientes nos escritórios de familiares ou parentes, tornando inviável, portanto, aquela restrição. Para Cristiano Zanin (ex-advogado de Lula), o impedimento imposto pelo CPC limitava a atuação de advogados parentes de magistrados. À propósito, as mulheres de Zanin e Dias Toffoli (ex-advogado do PT e chefe da AGU no segundo mandato de Lula) advogam em escritórios que defendem empresas e políticos condenados na Operação Lava Jato. Ao contrário do que pensa Gilmar Mendes, é pouco provável que Toffoli e Zanin não conheçam a carteira de clientes dos escritórios onde suas mulheres atuam.
Esta liberação no julgamento de processos sem as restrições do inciso VIII do Art. 144 do CPC mudou o objeto da clientela nos escritórios de parentes de magistrados : após o enterro da operação anticorrupção, novas ações pedem devolução de recursos confiscados (dinheiro sujo) e anistia de multas, além da libertação de corruptos confessos, eventualmente ainda na cadeia ou em prisão domiciliar. Neste cenário surrealista, serão inevitáveis não apenas os sérios danos aos cofres públicos (dinheiro dos contribuintes), mas também as discussões (e suspeitas) sobre imparcialidade e transparência no Poder Judiciário nacional.










