O famoso artigo 5º da Constituição Federal constitui o pilar dos direitos e garantias fundamentais de todos os cidadãos. Poucos lembram, entretanto, que é no inciso 43 deste precioso texto que os constituintes fizeram uma das mais importantes contribuições no combate ao crime — a inclusão da figura jurídica do crime hediondo, aquele para o qual não se pode dar o benefício da graça, indulto, anistia ou progressão de pena.
Para além de salvaguardar as garantias mais básicas, como a vida e a possibilidade de ir e vir, os constituintes foram sábios ao tratar de proteger os cidadãos e a sociedade da criminalidade mais agressiva. Em 1990, a Lei 8.072 regulou o tema para crimes como tráfico de drogas, tortura, estupro, extorsão mediante sequestro, dentre outros, como o homicídio qualificado, incluídos posteriormente em razão das demandas sociais.
Por mais paradoxal que seja, é hora de a lei ser novamente atualizada diante de tragédias, como as de São Sebastião (SP) e do Rio Grande do Sul. No recente caso gaúcho, mesmo diante dos 161 mortos e milhares de desabrigados, criminosos têm usado da comoção nacional para faturar, com o uso de PIX para falsas doações e outros golpes digitais, sem contar a prática de crimes mais tradicionais, como saques, roubos e furtos.
A Polícia Civil do Rio Grande do Sul desencadeou uma operação, com o sugestivo nome de Dilúvio Moral, para conter a onda golpista e os crimes generalizados contra o patrimônio. Até o fechamento deste artigo, três pessoas haviam sido presas em Santo André, no ABC Paulista, assim como vários marginais saqueadores e dedicados à subtração dos bens alheios foram encarcerados pela polícia local, auxiliada por forças policiais de outros Estados.
Não é a primeira vez que a malandragem abusa da dor alheia, mas, como estamos lidando com a maior tragédia climática e social da história do Brasil, a dimensão é outra. E deve ser combatida com rigor, a partir da inclusão, pelo Congresso, desses atos criminosos abjetos e absurdos no rol da Lei dos Crimes Hediondos.
O tema não deve ser tratado com a demagogia legislativa costumeira. Porém, a gravidade do que vem acontecendo exige uma medida taxativa.
Filosoficamente e no estudo de Direito, há uma posição de que as leis devam seguir o zeitgeist, o espírito do tempo. E devem ter um fim extraído desse caldo de valores: fazer com que os imperativos categóricos éticos da sociedade prevaleçam sobre os elementos desviantes que conspiram contra a paz social.
Não é de hoje que a sociedade brasileira clama por endurecimento, tanto na tipificação dos crimes (Código Penal) quanto na execução de penas (Lei de Execuções Penais). Lamentavelmente, as respostas dos legisladores federais não acontecem no tempo da dor dos cidadãos.
É do jogo democrático, a demora. O tempo da política exige formação de consensos, administração de dissensos e debates, mas pode ser apressado quando a voz rouca das ruas (e, hoje, das redes sociais) fala alto e dá o tom.
A tragédia gaúcha é daqueles marcos históricos com consequências futuras imprevisíveis, mas já é possível antever alguns efeitos prováveis. Teremos, obrigatoriamente, a formulação de uma política de enfrentamento às mudanças climáticas e precisaremos de esforços inéditos e nacionais nos financiamentos da reconstrução do Rio Grande.
Também já vislumbramos os efeitos político-partidários da tragédia na equivocada tentativa de o Governo do PT tentar capitalizar e decretar uma intervenção branca no Rio Grande do Sul, o que poderá ter efeitos ainda indizíveis no âmbito da política nacional. Faz parte do jogo político, embora não devesse.
Se mudanças teremos, é importante não fugir do essencial. E o combate ao crime faz parte do rol de temas prioritários. Que a tragédia do Sul seja a última a ter uma lei permissiva de enfrentamento aos golpistas e salteadores que atentam, contando com a impunidade e/ou fraqueza punitiva, contra toda sociedade brasileira.