O presidente Lula indicou para ocupar o cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal o ministro da Justiça e da Segurança Pública Flávio Dino, que atuou nessa condição em algumas investigações contra o ex-presidente Bolsonaro, além de nutrir inegável inimizade capital com ele e relação íntima de amizade com Lula.
Não entro no mérito de ser a melhor indicação para ocupar o cargo, que foge ao objeto deste artigo.
O que procurarei analisar é quanto à possibilidade de o indicado, no caso de ser nomeado, julgar processos em que o presidente Lula foi, é ou poderá ser parte, bem como aqueles que envolvam o ex-presidente Bolsonaro.
Vou tratar, para tanto, dos institutos do impedimento e da suspeição do magistrado.
Uma das regras fundamentais na judicatura é a imparcialidade do magistrado. Do contrário, com juiz tendencioso, não se aplica a verdadeira justiça.
Nosso sistema processual traz regras para que o magistrado parcial seja afastado do processo. São os casos de impedimento e de suspeição.
Impedimento liga objetivamente o magistrado ao processo, ao passo que suspeição às partes envolvidas no litígio.
A decisão proferida por juiz parcial é tão viciada, que é como se o ato judicial não existisse.
Além do mais, por ser uma das situações mais atentatórias à dignidade da Justiça, o Ministro do Supremo Tribunal Federal que decide sobre fato que é suspeito, em tese, deveria ser alvo de processo de impeachment por ter cometido crime de responsabilidade, com fundamento no artigo 39, 2, da Lei nº 1.079/1950.
O artigo 252 do CPP traz situações em que há interesse, direto ou indireto, do magistrado no desfecho do processo, anterior participação profissional ou de pessoas a ele ligadas por laços de parentesco, ou como testemunha. Diz a norma: “Art. 252. O juiz não poderá exercer jurisdição no processo em que: I – tiver funcionado seu cônjuge ou parente, consanguíneo ou afim, em linha reta ou colateral até o terceiro grau, inclusive, como defensor ou advogado, órgão do Ministério Público, autoridade policial, auxiliar da justiça ou perito; II – ele próprio houver desempenhado qualquer dessas funções ou servido como testemunha; III – tiver funcionado como juiz de outra instância, pronunciando-se, de fato ou de direito, sobre a questão; IV – ele próprio ou seu cônjuge ou parente, consanguíneo ou afim em linha reta ou colateral até o terceiro grau, inclusive, for parte ou diretamente interessado no feito”. Trata-se de causas de impedimento, que objetivamente devem afastar o magistrado do processo.
Já o artigo 254, inciso I, do CPP, cuida de modalidade de suspeição em que os sentimentos do magistrado em relação ao acusado podem levá-lo a uma decisão parcial. Diz a norma: “Art. 254. O juiz dar-se-á por suspeito, e, se não o fizer, poderá ser recusado por qualquer das partes. I – se for amigo íntimo ou inimigo capital de qualquer deles;”.
O Código de Processo Civil também elenca causas de impedimento e de suspeição de magistrados semelhantes às previstas na legislação processual penal, de forma mais ampla e detalhada (arts. 144 e 145).
Aquele magistrado que, por qualquer motivo, possui interesse no desfecho do processo, dele participou como advogado, já antecipou seu entendimento no caso concreto, possui séria desavença com qualquer das partes ou é delas amigo íntimo, tem de se dar por suspeito ou impedido, a depender da hipótese. Se não o fizer, há procedimento próprio previsto no Código de Processo Penal e no Código de Processo Civil para afastar o Magistrado suspeito ou impedido do processo.
Não é possível ao magistrado de qualquer instância nutrir afeto ou raiva em relação àquele que irá julgar. Tal proceder fere a regra mais basilar da judicatura, a imparcialidade, posto que a natureza humana o impede de proferir julgamento justo, já que estará envenenado pela raiva por seu inimigo, ou com pena ou comiseração de seu amigo, afastando a necessária objetividade.
Do mesmo modo, o magistrado que se apaixonou pela causa e tem interesse pessoal, moral ou material no resultado, não possui a menor condição de proferir julgamento correto por mais que se esforce. Isso ocorre quando já demonstra predisposição para julgar de um ou outro modo, o que comumente se vê quando antecipa sua posição ou mesmo se arvora em investigador, o que, decerto, mesmo que inconscientemente, leva-o a julgar de modo incorreto e de acordo com sua preconcepção dos fatos, marcada por sua ideologia.
Tais vícios processuais maculam de forma profunda o processo, desde a primeira decisão do magistrado, contaminando todas as demais, que serão absolutamente nulas.
Por isso, não é dado ao magistrado frequentar festas, participar de jantares e de outros eventos, ou manter qualquer outra forma de contato mais íntimo com aquela pessoa que irá julgar, o que inevitavelmente ferirá sua imparcialidade.
Magistrado que deve favores a quem quer que seja pode até julgar de forma imparcial, o que não é a regra, mas a desconfiança dos jurisdicionados sempre haverá, anotando que “a mulher de César não basta ser honesta, deve parecer honesta”.
Condutas deste tipo, praticadas pelo mais novo magistrado até o mais antigo da última instância, atentam contra o prestígio do Poder Judiciário, que passa a ter suas decisões questionadas pela população naqueles casos mais importantes e de conhecimento público, mormente quando afetam a vida das pessoas em geral.
O magistrado deve ser o primeiro a observar a legislação e se comportar de acordo com a ética e a moral, norte de todo aquele investido na sagrada missão de solucionar os conflitos existentes entre os particulares ou destes com o Estado, o que pode impactar profundamente na vida dos jurisdicionados e da sociedade em geral.
Basta, assim, que, verificando sua suspeição ou impedimento, conforme determina a legislação, afaste-se do processo para que outro magistrado imparcial possa presidi-lo e proferir a sentença ou decisão. Caso não o faça, cabe à parte interessada ingressar com a respectiva exceção, procedimento previsto na legislação para que seja o magistrado afastado do processo pelo órgão jurisdicional competente.
Essas mesmas hipóteses também são causas de impedimento e suspeição de Membros do Ministério Público, que, como fiscais da ordem jurídica, devem sempre agir com isenção.
Parece-me, portanto, que o ministro Flávio Dino, caso nomeado, não poderá julgar nenhum processo, em trâmite ou que poderá ser instaurado, cuja ação tenha sido movida por ou contra o Presidente Lula, por quem, e não há como negar, nutre íntima relação de amizade, tanto que é seu ministro e sempre se apresentou como pessoa a ele intimamente ligada, sendo suspeito com fundamento no artigo 254, inciso I, do Código de Processo Penal.
O mesmo ocorrerá, ainda, com as investigações em trâmite na Polícia Federal, órgão em que possui ascendência funcional e nomeia seus chefes, estando objetivamente impedido de oficiar, além de ter antecipado opinião acerca de condutas investigadas e imputadas a Bolsonaro, como as mortes em razão da pandemia; sem contar, ainda, as suspeitas que pesam contra si de ter se omitido e não tomado providências para impedir a eclosão dos atos considerados antidemocráticos de 08 de janeiro deste ano, nos exatos termos do artigo 252, inciso IV, do Código de Processo Penal. E a reforçar ainda mais sua parcialidade temos as declarações públicas nada amistosas proferidas contra Bolsonaro, que dão a entender que nutre profunda inimizade em relação a ele, sendo suspeito para julgá-lo (art. 254, I, do CPP).
Enfim, o direito traz as regras que devem ser observadas para que o magistrado suspeito ou impedido seja afastado do processo e, no caso de ministro do Supremo Tribunal Federal, a sanção para aquele que as desrespeitar, visando justamente que as decisões proferidas sejam revestidas da mais absoluta imparcialidade.
Autor: César Dario Mariano da Silva – Procurador de Justiça – MPSP. Mestre em Direito das Relações Sociais – PUC/SP. Especialista em Direito Penal – ESMP/SP. Professor e palestrante. Autor de diversas obras jurídicas, dentre elas: Comentários à Lei de Execução Penal, Manual de Direito Penal, Lei de Drogas Comentada, Estatuto do Desarmamento, Provas Ilícitas e Tutela Penal da Intimidade, publicados pela Editora Juruá.