O brasileiro, antes circunscrito ao seu mundo e alheio à política e à justiça, despertou e passou a interessar-se por temas até então desconhecidos do seu cotidiano e muitas vezes enfadonhos.
O que antes eram termos técnicos e desconhecidos pela maioria da população ganhou corpo e tornou-se alvo de discussões nos grupos sociais de maneira acalorada. Termos como presunção de inocência ou de não culpabilidade, trânsito em julgado, direito penal mínimo, lei e ordem, entre outros, não são mais restritos aos bacharéis ou operadores do direito em geral.
No entanto, essa mesma população fica atônita ao perceber que no direito há as mais variadas interpretações para o mesmo fato, apesar de o direito e suas intrincadas cadeias de normas serem os mesmos.
Costumo dizer aos meus alunos que o direito, especialmente o penal, é pura ideologia, como resumido em um velho ditado popular: “o uso do cachimbo entorta a boca”.
Martin Heidegger, um dos maiores filósofos alemães do século XX, em seu livro “Ser e Tempo”, secundado por seu seguidor Hans-Georg Gadamer, também filósofo alemão e estudioso da hermenêutica, ou seja, a ciência que estuda a interpretação das normas jurídicas, explicam por que há essa diversidade de interpretações.
Para Heidegger, a interpretação torna-se inerente à totalidade da experiência humana, vinculada à sua condição finita de possibilidade, sendo uma tarefa criativa e circular que ocorre no âmbito da linguagem, deixando, portanto, de ser estudada sob a perspectiva normativo-metodológica.
Com efeito, Heidegger entende que a hermenêutica se dirige à compreensão como totalidade e à linguagem como meio de acesso ao mundo e às coisas. A compreensão é o cerne da interpretação. Ela possui uma estrutura na qual o sentido é antecipado e é composta por pré-compreensão, visão prévia e antecipação, surgindo dessa estrutura a situação hermenêutica.
Gadamer, por sua vez, em seu livro “Verdade e Método”, defende que a linguagem é essencial para a compreensão. Ter um mundo é ter uma linguagem. As palavras são especulativas e toda interpretação é especulativa, uma vez que não se pode crer em um significado infinito, o que caracterizaria o dogma. A hermenêutica, portanto, é universal e pertence ao ser da filosofia. Não há distinção entre compreensão e interpretação, uma vez que compreender é sempre interpretar, ou seja, é uma fusão de horizontes. Assim, o ato de interpretar implica a produção de um novo texto com a adição do sentido dado pelo intérprete dentro de uma concepção dialógica. Essa adição decorre da consciência histórica do intérprete, razão pela qual a hermenêutica deve atentar para o aspecto construtivista da história, não podendo ficar limitada à intenção do autor ou ao significado original.
Quando há interpretação, o intérprete já possui uma pré-compreensão daquilo que será interpretado, incluindo as palavras que serão usadas. O intérprete tem uma visão antecipada do que será analisado. Suas experiências, seu modo de vida, sua religião, etc., permeiam a interpretação. Toda perspectiva já faz parte da compreensão e interpretação. Ambas partem de uma estrutura prévia caracterizada por pré-posição, visão prévia e concepção prévia, ligada à visão do intérprete.
Com efeito, tudo aquilo que se interpreta parte da essência na perspectiva do intérprete.
Heidegger nomeou de Dasein a entidade que, em seu ser, conhecemos como vida humana. São as experiências vividas por cada um de nós que nos moldam do jeito que somos e, assim, direcionam a interpretação das normas de acordo com a história de vida do intérprete.
Simplificando em uma linguagem mais acessível: o histórico de experiências vividas, boas e ruins, a educação recebida e a religião moldam a estrutura do ser de cada pessoa, influenciando a interpretação das normas jurídicas.
Por isso, reafirmo que o direito penal é pura ideologia, que direcionará a interpretação das normas pelo operador do direito.
Quem teve uma educação e experiências de vida de esquerda terá uma visão mais humanista da vida, dando prevalência aos direitos individuais em detrimento do coletivo. Será mais propenso ao direito penal mínimo, de acordo com a medida em que vê o ser humano como produto do meio em que vive. A visão da pessoa com uma formação e vivências de esquerda, por exemplo, é que os criminosos em geral não merecem penas severas, especialmente em crimes patrimoniais, pois vivem em uma sociedade burguesa e capitalista na qual os mais pobres estão em desvantagem e, portanto, não têm as mesmas condições de levar uma vida digna comparado àqueles nascidos em uma situação mais favorável. Portanto, juízes com formação de esquerda tendem a ser mais flexíveis e tolerantes com a criminalidade.
Por outro lado, aqueles que foram educados e viveram segundo padrões morais de direita serão mais conservadores e, assim, mais rigorosos nos padrões morais, tendendo a não aceitar violações das regras legais e costumeiras. Assim, sua interpretação das normas jurídicas será mais severa e tenderá a não ser flexível com qualquer infração à normatização vigente.
E, para comprovar pragmaticamente o que afirmo, analisem as decisões de nossas Cortes Superiores à luz da história de cada um dos ministros e entenderão perfeitamente o motivo delas.
Fica claro, portanto, o motivo pelo qual a interpretação das normas varia de acordo com a ideologia de direita e de esquerda, embora haja pessoas que possam adotar uma posição intermediária, não sendo, contudo, a regra.
E, por mais que o intérprete queira se despir de sua ideologia, pode fazê-lo até certo ponto, mas, no final das contas, sua vivência, ou seu Dasein, conforme Heidegger, prevalecerá, e a interpretação, por mais que mínima, estará impregnada pela ideologia.