Passeatas e campanhas são importantes, mas não bastam. Enquanto não acolhermos mulheres com suporte integral e não tratarmos os agressores com seriedade continuaremos perdendo vidas.
Feminicídio não começa no crime: começa no silêncio, no controle e na omissão do Estado. Prevenir exige acolher profundamente quem sofre e tratar com urgência quem agride.
Por que as estratégias atuais falham
Apesar dos avanços legais, do aumento nas denúncias e da mobilização social em torno do combate à violência de gênero, os números de feminicídio não diminuem. Ao contrário: seguem crescendo. E isso revela um ponto incômodo, mas urgente de ser enfrentado as estratégias que temos usado não estão funcionando.
Passeatas, campanhas, hashtags, cartazes com dizeres fortes. Tudo isso é importante, necessário. Mas não é suficiente.
Muitas mulheres que marcham nas ruas contra a violência voltam para casa e enfrentam, em silêncio, o mesmo ciclo de abuso que as trouxe até ali.
Elas gritam para fora, mas se calam por dentro.
Se calam porque têm medo. Porque foram desacreditadas. Porque não sabem se serão protegidas. Porque não têm onde ir. Porque não têm estrutura psíquica ou material para romper o vínculo.
O silêncio dentro de casa, o medo de denunciar
É ingênuo e cruel esperar que uma mulher denuncie quando ela não tem segurança, rede de apoio ou espaço para reconstruir sua vida.
A maior parte das vítimas não se cala por fraqueza, mas por cansaço, dependência emocional e esgotamento subjetivo.
E é exatamente por isso que seguimos enxugando gelo: agimos tardiamente, quando o ciclo da violência já chegou ao limite.
O feminicídio não começa no ato fatal. Começa com o controle, a manipulação emocional, a humilhação cotidiana, o isolamento. Quando o Estado e a sociedade não intervêm nesse início, o fim é previsível.
Centros de Acolhimento: do abrigo à reconstrução
É urgente criar Centros de Acolhimento para mulheres em situação de violência.
Não apenas abrigos emergenciais, mas espaços de reconstrução psíquica, social e emocional.
Essas mulheres precisam de muito mais do que proteção física. Precisam de um lugar onde possam ser escutadas com responsabilidade, orientadas com técnica e cuidadas com profundidade.
O que esses centros devem oferecer:
Atendimento psicológico individual e em grupo
Apoio psiquiátrico, quando necessário
Orientação jurídica e social
Suporte financeiro e moradia temporária
Capacitação profissional
Construção de autonomia emocional e afetiva
Sair de um relacionamento abusivo não é uma decisão simples. É um processo interno lento, doloroso e, muitas vezes, confuso.
É por isso que os Centros de Acolhimento devem estar preparados para acompanhar a mulher em todas as fases do rompimento e reconstrução.
Intervir em quem agride: responsabilizar e tratar
Esse é o ponto mais evitado, mas talvez o mais urgente:
Também precisamos cuidar de quem agride.
Sim, o agressor precisa ser responsabilizado legalmente. Mas não basta prender e soltar.
Sem nenhum tipo de tratamento, muitos desses homens saem das prisões e repetem o mesmo padrão com outras mulheres.
Saem sem reeducação emocional, sem enfrentamento psíquico, sem qualquer intervenção clínica.
Enquanto não tratarmos os agressores, vamos continuar tendo casos extremos de feminicídio, agressões e abusos.
De nada adianta seguir fazendo passeatas, marchando por justiça, se esses homens continuam entrando e saindo do sistema penal sem nenhuma transformação.
Precisamos parar de ser hipócritas. Precisamos mudar a política de tratamento e parar de fingir que punir é o mesmo que prevenir.
Centros de Reeducação Emocional para agressores devem incluir:
Psicoterapia individual com foco em responsabilização
Grupos reflexivos sobre masculinidade, posse e afeto
Intervenção em padrões familiares de violência
Educação emocional e manejo da raiva
Acompanhamento interdisciplinar com articulação jurídica
Não se trata de “passar a mão na cabeça”. Trata-se de impedir que novos crimes aconteçam.
O feminicídio só vai parar quando o ciclo da violência for interrompido na origem e isso exige intervenção dos dois lados.
Prevenção sistêmica: saúde, justiça e assistência integradas
O enfrentamento da violência de gênero não é responsabilidade de uma única área.
Exige integração entre saúde mental, sistema de justiça, assistência social, segurança pública, educação e políticas habitacionais.
Exige profissionais preparados, equipes multidisciplinares, e acima de tudo uma mudança de mentalidade.
Não podemos mais atuar apenas no trauma. Temos que atuar na prevenção.
Na escuta, na contenção, na reconstrução.
Na estrutura que protege e transforma.
Do luto à política pública: o que fazer agora
Feminicídio não é tragédia.
É consequência de omissão, negligência e ausência de política pública consistente.
É hora de parar de reagir só após as mortes.
É hora de construir estruturas reais de cuidado e responsabilização.
Cidades, estados, instituições: implementem centros-espelho.
Um para acolher mulheres com profundidade.
Outro para tratar agressores com rigor.
Sem isso, vamos continuar marchando nas ruas e enterrando as mesmas histórias.