Cai-me às mãos, pela atenção de um amigo queridíssimo, este artigo do jornalista Mario Sergio Conti (MSC), “Em defesa dos ateus”, dado à publicação na Folha, sobre o qual atrevi-me a fazer algumas anotações. Há no artigo uma afirmação categórica, final, definitiva, imperiosa, acaçapante: “Deus não existe.” Que enorme pretensão a de MSC!, a de saber que Deus não existe! Não que o autor não saiba se Deus existe.
Ele sabe que Deus não existe! Paradoxalmente, ali mesmo o autor cita o famoso dito atribuído a Sócrates, “só sei que nada sei”, mas ele próprio, falto da humildade de Sócrates, impõe se omnissapiente, exibe-se como oráculo supremo (nestes tempos em que abundam supremos oráculos) e proclama a sua verdade absoluta “Deus não existe”. E o diz como se fosse, ele próprio, o descobridor de um fato desconhecido por todos, um segredo de Polichinelo: “Está firme na cadeira? Então escuta esta: Deus não existe.” Se MSC se limitasse a dizer “Eu não acredito em Deus”, ele mereceria respeitado.
Mas fazer de mero pensamento próprio um dogma inafastável, e não simples proposição, é filosoficamente despiciendo. Acaso submete MSC ao crivo do leitor alguma fundamentação séria?, argumentos de ordem filosófico-ontológica? Não. Apenas isto: “Com um mínimo de lógica, contudo, conclui-se que não há uma mísera prova disso [de que Deus exista].” Mas não há no artigo esse “mínimo de lógica”, não há ali o desenvolvimento de lógica alguma.
Para manter a inexistência de Deus, invoca MSC estatísticas, ora vejam, de ordem econômica: que nos ricos países escandinavos, os ateus formam a maioria. Entre nós, diz o autor que só 8% dos brasileiros teriam dito não ter religião e que, “para os 92% religiosos, os 8% descrentes são uma minoria má e perversa”. Eu mesmo, em meus longos 78 anos, jamais ouvi ou li em lugar algum a denúncia de que ateus são “maus e perversos”, feita por cristãos.
O autor teria alguma pesquisa nesse sentido ou isto vem apenas para sustentar o título do artigo e justificar a investida contra os pios? Porque não-crente, o autor se sente “discriminado pelas institiuições e meios de comunicação, a cultura e as artes”! (É de ver-se aí um iconoclasta em potencial?, corre risco a Catedral de Brasília do genial arquiteto ateu-comunista?…) Como diabos se dá tal discriminação?… Há mais naquele artigo. Mesmo sem formação em ciências jurídicas, o autor faz sua preleção em Direito Constitucional.
Para ele, “a separação entre religiões e Estado é uma completa farsa”. Por que?, porque a Constituição atual anuncia em seu preâmbulo que foi promulgada “sob a proteção de Deus”. O Preâmbulo, ele não sabe, não é norma constitucional! Vamos reler o que disse o saudoso Min. Carlos Velloso: O preâmbulo (…) não se situa no âmbito do Direito, mas no domínio da política, refletindo posição ideológica do constituinte.
É claro que uma Constituição que consagra princípios democráticos, liberais, não poderia conter preâmbulo que proclamasse princípios diversos. Não contém o preâmbulo, portanto, relevância jurídica. O preâmbulo não constitui norma central da Constituição, de reprodução obrigatória na Constituição do Estado-membro. O que acontece é que o preâmbulo contém, de regra, proclamação ou exortação no sentido dos princípios inscritos na Carta: princípio do Estado Democrático de Direito, princípio republicano, princípio dos direitos e garantias, etc.
Esses princípios, sim, inscritos na Constituição, constituem normas centrais de reprodução obrigatória, ou que não pode a Constituição do Estado-membro dispor de forma contrária, dado que, reproduzidos, ou não, na Constituição estadual, incidirão na ordem local. [ADI 2.076, voto do rel. min. Carlos Velloso, j. 15-8-2002, P, DJ de 8-8-2003.] Ora, as palavras “sob a proteção de Deus” estão insertas no preâmbulo não porque assim o quis o Cardeal Arcebispo de Brasília. Estão lá porque assim o quiseram os Constituintes eleitos pelo povo.
Isto não significa que o Estado brasileiro não seja laico. Mas vai além o articulista: em tom desnecessariamente pouco respeitoso, menciona o Crucifixo no plenário do STF e no gabinete do Presidente da República, o que diz ser “um abuso”. A presença do Crucifixo no plenário da suprema corte não transforma seus ministros em aiatolás. Um juiz pode ser cristão e ter o Crucifixo na parede de sua sala, ou ser muçulmano e ter o corão sobre a sua mesa, mas julgará com sujeição única à lei e à Constituição, não ao preâmbulo desta última… nem às convicções religiosas pessoais.
Um código de conduta poderia ter em seu preâmbulo a frase “sob inspiração da ética de Aristóteles”, mas isto não permitiria invocar-se a filosofia aristotélico-tomista na aplicação de suas normas. Há mais ainda. O autor descobre-se um socialist luvvie e, na linha dos argumentos econômicos para negar Deus, traz o velho bordão marxista “religião é ópio do povo”, talvez à falta de idéias novas e melhor fundamentadas.
Pior ainda, alinha-se com o islamo-gauchisme ao escrever “atual morticínio que Israel perpetra em Gaza”, como se a organização terrorista Hamas nada houvesse feito no fatídico 7 de Outubro e como se Israel nada devesse fazer para garantir a própria sobrevivência. Aqui não se pode dizer que o articulista escreveu par inadvertance. É engajamento político. O fato de que nações pegaram em armas para guerras de conquista e aniquilação em nome de Deus não é prova de que Deus não existe.
Non scherziamo! Elas apenas desnudam estupidez e maldade humanas. Para finalizar, o artigo de MSC não resulta ser senão une petitesse, escrito sem conhecimento de causa mas em perfeita sintonia com o contexto brasileiro onde estão a inverter-se, desintegrar-se e derreter-se as raízes da civilização ocidental que herdáramos da cultura da Grécia e do direito de Roma, com seus princípios, valores, graça e pulcritude. Que em quinhentos ou mil anos as futuras gerações venham à nossa cidade tão só para visitar o Templo de Salomão no Brás, como se àquilo pudéssemos comparar qualquer dos legados arquitetônicos de Roma ou Grécia antigas, isto é apenas mais um escárnio à cultura greco-romana.