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Humor tóxico: O preço do escárnio na saúde mental – por Cristiane Sanchez

Você já se perguntou o que existe por trás de uma piada sobre ‘estar surtando’ ou ‘ser bipolar’ ou usar o termo “CAPS”?

O que parece apenas humor digital revela, na verdade, uma dinâmica corrosiva: quase um quarto do conteúdo sobre saúde mental nas redes sociais usa a dor como piada.

E a zombaria não para aí; ela alcança até os serviços públicos que cuidam dessa dor.

E a injúria não para no indivíduo. Ela se estende à instituição que o acolhe.

 Em um reflexo brutal do descrédito social, o principal aparato de cuidado em saúde mental do país é sistematicamente deslegitimado: 83,8% das menções aos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) carregam um tom negativo nas plataformas online.

A questão que se impõe urgente é: o que resta da nossa humanidade quando o riso se torna uma forma de exclusão?

O riso e a sofisticação do preconceito

O humor, em sua forma mais pura, é de fato um bálsamo. É a capacidade humana de encontrar leveza na tragédia e de aproximar experiências. Mas existe um humor que foge dessa tônica e afia o estigma.

Nas últimas décadas, a defesa do riso como catarse foi tão vigorosa que acabamos por negligenciar seu lado sombra: o riso que se apoia na dor alheia.

Pesquisas recentes traçam um panorama sombrio: estudos experimentais de 2023 demonstraram que a exposição a posts que ridicularizam o tratamento psiquiátrico leva as pessoas a duvidarem da eficácia do cuidado e diminui drasticamente sua intenção de buscar apoio profissional.

 A piada, neste contexto, não é mais inofensiva, ela se torna uma barreira ativa.

A Organização Mundial da Saúde estima que mais de 1,1 bilhão de indivíduos no planeta convivem com algum transtorno mental.

Paradoxalmente, o estigma social, essa invisível camisa de força, é frequentemente citado como uma adversidade mais penosa do que a própria doença.

No frenesi digital, o problema é elevado à enésima potência.

Memes e vídeos “engraçado” atuam como veículos de banalização, transformando diagnósticos complexos em tags vazias, distorcendo sintomas genuínos e reduzindo o sofrimento a um espetáculo performático.

O humor tóxico veste a máscara da ironia, mas sua consequência é a dor mais crua. Ele opera um isolamento silencioso, forçando o indivíduo a camuflar sua luta,  temer o julgamento e  internalizar a culpa por uma condição de saúde.

O palco do descrédito

A epidemia de deboche não se contenta em ferir o indivíduo.

Seu segundo ato, e talvez o mais perigoso, é a deslegitimação do sistema público de cuidado.

 O dado de 83,8% de negatividade nas menções aos CAPS é a prova de que o descrédito se alastra do pessoal ao institucional, transformando-se em uma chaga política.

Os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) são frutos da histórica Lei 10.216/2001, o farol da reforma psiquiátrica brasileira.

 Eles foram concebidos para resgatar a dignidade, oferecendo tratamento em liberdade, com acolhimento multidisciplinar, em oposição ao confinamento manicomial. São, em essência, a promessa de que ninguém precisa enlouquecer sozinho ou ficar isolado.

Contudo, na arena digital, a narrativa perde a nuance e a complexidade.

Os CAPS são reduzidos a caricaturas de caos, fracasso e, pior, a sinônimos pejorativos, servindo de munição em discussões acaloradas e piadas de mau gosto.

É inegável que essa desconfiança não surge do nada.

Ela é nutrida pela realidade de um sistema subfinanciado e desigual.

A carência estrutural é real: o Relatório de Auditoria do TCE-ES (2025), por exemplo, atesta a cobertura irregular, com 21,6% dos municípios que deveriam ter CAPS ainda sem o serviço. A carência de profissionais e a dificuldade de manter a infraestrutura são desafios diários.

Mas a deslegitimação simbólica é um erro sério e é uma ameaça à política pública. Ao simplificar a instituição em uma anedota de fracasso, a sociedade desqualifica a única rede de segurança para milhões de brasileiros.

Quando um adolescente vê o termo “CAPS” ser usado como injúria em um fórum, a mensagem é internalizada: buscar ajuda  se torna motivo de vergonha.

Neste ponto, o humor que banaliza e o descrédito que desumaniza se fundem em um ciclo de autossabotagem social: a cultura impede o acesso, e a falta de acesso reforça a crítica cultural.

O ciclo da Solidão silenciada

O mecanismo perverso é dolorosamente previsível:

  1. A Redução: O sofrimento real e clinicamente complexo é trivializado, resumido a uma hashtag (“todo mundo é bipolar hoje em dia”, “o surto é meu e eu faço o que quero”).
  2. O Isolamento: O serviço público de cuidado é atacado e desacreditado na praça virtual.
  3. A Queda de Confiança: O indivíduo hesita, teme o julgamento e evita a associação de seu nome a algo ridicularizado.
  4. O Silêncio: As pessoas deixam de buscar ajuda, e o sofrimento cresce, longe dos olhos e do amparo profissional.

Essa dinâmica não é um acidente, é o custo social da nossa irresponsabilidade digital. O aumento de 79% nas denúncias e atendimentos ligados à saúde mental nas redes, registrado pela SaferNet Brasil em 2024, comprova que, enquanto o país discute se a dor é “frescura”, a crise se aprofunda.

Rir com a humanidade, não dela

O humor pode ser, sim, alivirar e ensinar, mas apenas quando nasce da empatia.

Há um abismo ético entre rir com alguém e rir de alguém.

O primeiro é gesto de acolhimento e cumplicidade; ele constrói pontes e valida a experiência. O segundo é um ato de humilhação, que ergue muros e sentencia.

Quando pessoas que trilharam o árduo caminho da dor utilizam o humor para se expressar e encontrar pares para compartilhar, o efeito é terapêutico, liberador. Mas quando o riso é lançado por aqueles que estão “de fora” – sem a vivência, sem a escuta, sem o respeito –, se torna instrumento de opressão.

Se a nossa ambição é remodelar o discurso nacional sobre saúde mental, a mudança precisa começar na linguagem e nos hábitos digitais.

Isso exige de cada um de nós  uma vigilância ética sobre como utilizamos diagnósticos em memes, como reagimos ao sofrimento do próximo e como defendemos os serviços públicos que são a última linha de defesa da dignidade.

O Ministério da Saúde demonstra um esforço institucional para reverter o quadro, com a retomada da publicação do Saúde Mental em Dados (2025) e o anúncio de R$ 383 milhões anuais para novos investimentos e custeio dos CAPS. Há recursos sendo mobilizados, há uma rede que se expande.

Mas esse esforço material é incompleto sem a reconstrução simbólica. É nosso dever cívico e humano devolver credibilidade, respeito e um olhar empático ao CAPS.

Defender o Centro de Atenção Psicossocial não é defender uma sigla ou um prédio; é defender o direito fundamental de ser cuidado em comunidade, em liberdade, e não enlouquecer em silêncio e solidão.

O riso, quando desacompanhado de compaixão, é uma forma de condenação e nos empobrece. Quando ele nasce da nossa humanidade compartilhada, ele é, talvez, a prova de que ainda podemos sentir com o outro.

Referências:

Organização Mundial da Saúde (OMS). Classificação Internacional de Doenças (CID-11). Disponível em: https://icd.who.int.

Organização Mundial da Saúde (OMS). Mental Disorders: Key Facts. Genebra, 2023. Disponível em: https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/mental-disorders.

INSS / Ministério da Previdência Social. Dados sobre afastamentos por Síndrome de Burnout. Relatórios e comunicados oficiais (2020–2023). Disponível em: https://www.gov.br/previdencia.

SaferNet Brasil. Relatório Helpline 2024 – Saúde Mental e Internet. Disponível em: https://www.safernet.org.br.

Ministério da Saúde. Saúde Mental em Dados – nº 13. Brasília, 2025. Disponível em: https://www.gov.br/saude.

Agência Gov. “Saúde anuncia R$ 383 milhões por ano para custeio de CAPS e SRT.” Publicado em 10 out. 2024. Disponível em: https://www.gov.br.

Lei nº 10.216, de 6 de abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas com transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial. Disponível em: https://www.planalto.gov.br.

Tribunal de Contas do Estado do Espírito Santo (TCE-ES). Relatório de Auditoria Operacional na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). Vitória, 2025. Disponível em: https://www.tce.es.gov.br.

 Pew Research Center. The State of Online Harassment. Washington, 2021. Disponível em: https://www.pewresearch.org/internet/2021/01/13/the-state-of-online-harassment.

The Lancet Commission on Ending Stigma and Discrimination in Mental Health. The Lancet, vol. 400, no. 10361, 2022. DOI: https://doi.org/10.1016/S0140-6736(22)01470-2.

Psychological Medicine. Effects of Humor on Mental Health Stigma and Help-Seeking Intentions. Cambridge University Press, 2023. DOI: https://doi.org/10.1017/S0033291723000950.

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