Ao acordar para o ocidente nas últimas décadas, a China mostrou excelência na economia e ousadia inovadora. Há 30 anos, seria absurdo pensar o gigante comunista como polo de inovação tecnológica e do capitalismo. Hoje, vê-se que os chineses têm muito a contribuir, mas não sem riscos. Para além de questionamentos sobre práticas de dumping em alguns setores e explorações trabalhistas, chama a atenção dos especialistas em Direito do Consumidor a guerra que vem sendo travada no mercado de entregas.
A chegada ao Brasil da Keeta, no final de outubro, acendeu uma luz amarela. A marca é a bandeira usada pela Meituan, maior plataforma de delivery da China. Acusada de práticas anticoncorrenciais pelo próprio governo chinês — com multas de cerca de R$ 2,6 bilhões, aplicadas por coagir restaurantes a aceitar cláusulas exclusivas, como revelam documentos públicos — a empresa desembarcou no mercado brasileiro sob forte controvérsia. O temor é que a entrada da Meituan no Brasil seja um ovo da serpente.
Nas primeiras semanas de operação em Santos e São Vicente, onde a Meituan iniciou seu piloto em 30 de outubro, muitas das práticas já criticadas no exterior se repetiram aqui. Entregadores organizaram, nos primeiros dias de novembro, um protesto com mais de 300 trabalhadores, denunciando remuneração insuficiente, bloqueios automáticos após recusa de corridas e descontos aplicados em cancelamentos.
Paralelamente, surgiram intensas queixas de restaurantes. Empresários relataram que o aplicativo começou listando estabelecimentos sem contrato, aplicando descontos compulsórios, ocultando critérios de repasse e até exibindo páginas contratuais em outro idioma, como se verifica neste levantamento.
Outro procedimento configurou um verdadeiro “sequestro simbólico” de restaurantes: estabelecimentos — dentre eles, grandes redes como o Outback – passaram a descobrir que “existem” na plataforma apenas quando consumidores passam a reclamar de pedidos que jamais autorizaram. A prática envolve uso indevido de marca, cardápio, fotos e preços — induzindo o consumidor ao erro e violando frontalmente os princípios da informação adequada e da transparência previstos no Código de Defesa do Consumidor (CDC).
A intermediação disfarçada, em que entregadores compram como consumidores para viabilizar pedidos atribuídos à Keeta, agrava ainda mais esse quadro, criando expectativas falsas e transferindo riscos para restaurantes e clientes.
No campo trabalhista, o modelo de “operadores logísticos” adotado pela Keeta foi classificado como terceirização fraudulenta, ao impor metas exaustivas, escalas rígidas e controle de jornada sem vínculo formal — padrão típico de subordinação. Denúncias sobre incentivos ilegais ao aumento de velocidade, jornadas extenuantes e exigência de uso de bags foram detalhadas em depoimentos disponíveis neste material.
Diante de tudo isso, a atuação do Ministério Público, do Ministério Público do Trabalho (MPT) e da Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon) deve ser imediata. É urgente instaurar procedimentos para apurar violação dos direitos dos consumidores, abusos contra trabalhadores e distorções concorrenciais. Medidas como a retirada de estabelecimentos não autorizados, exigência de contratos formais, revisão de práticas de repasse e fiscalização das condições de trabalho impostas aos entregadores não podem mais ser adiadas.
O Brasil não pode permitir que episódios já observados em outros países — incluindo multas bilionárias, denúncias de exploração e protestos por condições abusivas — se repitam aqui sem resposta institucional. O ovo da serpente está posto. Cabe às autoridades impedir, em tempo, que ecloda.
Mestre em Direito Internacional pela PUC/SP, Especialista em Direito do Consumidor, Membro da Comissão de Direito do Consumidor pela OAB/SP, Sócia do escritório Zucare Advogados Associados











