No país onde o rabo abana o cachorro e o poste neste último urina, tudo pode ocorrer.
No aniversário da Operação Lava-jato, que completou 10 anos neste mês de março, não há mais ninguém preso por ela. O último que deixou a prisão foi o ex-governador do Rio de Janeiro Sérgio Cabral, condenado a centenas de anos por desviar não se sabe ao certo quanto, porque nem tudo foi apurado, mas milhões e milhões de reais dos cofres públicos.
Toda sorte de manobra política e jurídica foi milimetricamente planejada para acabar com a maior operação de combate à corrupção deflagrada neste país e uma das maiores do mundo.
O resultado está aí, à nossa volta, e impactará na vida de todo cidadão de bem, de direita ou de esquerda, pelos mais variados motivos, que não é preciso e nem recomendável externar.
Antes da deflagração da Operação Lava-jato era impensada a condenação da nossa “oligarquia”, representada por aqueles mesmos políticos, muitos deles mantidos no poder às custas de imensa propina, fornecida por empresários inescrupulosos, que sempre viram o lucro acima de tudo, inclusive da qualidade de vida, saúde e bem-estar da população.
Com base em doutrina só conhecida por quem atua no combate ao crime organizado ou estuda o tema, notadamente em técnicas empregadas na Operação Mãos Limpas na Itália, começaram as investigações e proposituras de ações, que atingiram em cheio essas pessoas.
Uma das técnicas conhecidas é levar a público o que está a ocorrer, de modo a não advir a denominada “operação abafa”, que até então era muito comum em casos envolvendo crime organizado e as pessoas mais poderosas do país.
Técnicas pouco empregadas, como a colaboração premiada, forças-tarefas e análise dos fatos como um todo e não apenas frações deles, que não propiciavam o conhecimento do macro e, por conseguinte, a obtenção das provas necessárias, tornaram-se comuns nas diversas fases da operação.
A prova indiciária começou a elucidar questões ocultas, posto que em lavagem de dinheiro, corrupção e outros crimes correlatos, dificilmente se obtém documentos e se localizam testemunhas que se prontifiquem a depor, já que as pessoas que conhecem os fatos normalmente fazem parte do esquema criminoso.
Indícios, para quem não sabe, são fatos secundários, conhecidos e provados, relacionados com o fato principal, que autorize com o emprego de processo dedutivo/indutivo chegar-se à conclusão sobre algo. Enquanto a prova direta se refere aos fatos a serem provados, ao objeto da prova, a prova indireta ou indiciária se refere a outros fatos próximos ou remotos ao indicado, que permitem por meio de processo lógico (indução e dedução) chegar-se ao objeto da prova. Isoladamente, em regra, o indício não é uma prova plena. Mas vários indícios apontando sempre em uma mesma direção podem demonstrar a ocorrência de um fato ou circunstância.
Assim, imprescindível encontrar o fio da meada, alguém que queira falar, normalmente um criminoso com muito a perder que, a troco de alguns benefícios legais (colaboração premiada), esclareça os fatos e traga ou indique as provas a serem colecionadas.
Na Operação Lava-jato essas técnicas de investigação foram amplamente empregadas, segundo as regras do jogo do momento.
Com isso, sentenças condenatórias foram proferidas para o desespero daquelas pessoas até então inalcançáveis, e de seus advogados, acostumados a quase sempre obterem a anulação das provas e a absolvição de seus clientes milionários, mormente nos Tribunais Superiores.
De repente, regras reinantes e aplicadas em diversos outros casos foram drasticamente alteradas, leis publicadas e jurisprudência revista de modo a anular por vícios processuais aqueles processos, que seguiam as regras processuais do momento do ato, tanto que as decisões foram, em sua grande maioria, mantidas por unanimidade nos tribunais locais e no Superior Tribunal de Justiça.
E essas anulações por vícios formais foram quase sempre determinadas por dois ou três ministros de uma das turmas da Suprema Corte ou de forma monocrática por meio de liminar.
Os profissionais que atuaram na Operação Lava-jato inovaram ao usar técnicas pouco empregadas e seguiram as regras processuais vigentes. Por isso, seu estrondoso sucesso, vez que surpreendeu àqueles acostumados com procedimentos investigatórios e processos burocráticos, que, por não analisarem meticulosamente detalhes e o todo, mas apenas parcela dos fatos, não chegavam ao núcleo da corrupção, que reinava livre, leve e solta na Petrobrás e em outras estatais.
Não há como negar que alguns excessos pontuais ocorreram, mas nem de longe poderiam acarretar a anulação de quase todos os processos, mormente aqueles que envolviam uma pessoa em especial. Um ou outro vício processual poderia acarretar a anulação de um ato jurídico e não de todos os processos.
Dizer que a Lava-jato é um exemplo a não ser seguido, como já ouvi de diversos operadores do direito, inclusive magistrados e membros do Ministério Público, não procede.
Houve algumas irregularidades que ocorrem em praticamente todos os processos de imensa complexidade. Além disso, alguns atores processuais se deixaram levar pela excessiva vaidade; no entanto, advieram muito mais acertos do que erros, ficando o exemplo de um modelo de atuação eficaz, que pode ser aprimorado.
Pelos métodos de investigação até então utilizados, não se via punição para as pessoas mais poderosas do país, protegidas por um sistema processual arcaico, que engessa as investigações e possui válvulas de escape a serem empregadas ao final do jogo com a obtenção de nulidades subjetivas, a depender da visão de cada intérprete, no mais das vezes que não trouxeram nenhum prejuízo às partes.
Infelizmente, ao menos para os cidadãos de bem, voltamos ao sistema anterior. Basta ver que desde o fim da Lava-jato praticamente nada mais foi apurado, como se não houvesse crimes às pencas que foram cometidos e seriam fatalmente descobertos, já que sempre fatos novos apareciam e os procedimentos “davam cria”, surgindo outros que, por sua vez, iriam chegar a outros fatos desconhecidos em progressão geométrica, haja vista que crimes praticados e não apurados é o que não falta no Brasil.
No entanto, o que vemos na atualidade é a demonização da Lava-jato, a ponto de serem perseguidos seus atores. Observem como a imprensa notícia com certa alegria e comemoração quando os processos são anulados e os presos soltos. Para o deleite de muitos, isso não mais ocorrerá, já que todos estão nas ruas com muito dinheiro ilícito escondido em algum paraíso fiscal, vez que a experiência mostra que apenas parte do todo é recuperada.
Tristes dias para o direito, para a ética e para a moral no país em que o crime compensa e a ele combater pode render processo, execração pública, cassação de mandato eletivo, pagamento de indenizações e quiçá até mesmo cadeia.
Enfim, posso dizer nos meus mais de 30 anos de atuação no combate à criminalidade, ordinária e organizada, que o crime no Brasil compensa e muito, e não é preciso ser nenhum gênio para isso constatar. E os motivos estão aí, à vista de todos, para o delírio de poucos e tristeza de muitos, que sofrerão suas consequências.
Autor: César Dario Mariano da Silva – Procurador de Justiça – MPSP. Mestre em Direito das Relações Sociais – PUC/SP. Especialista em Direito Penal – ESMP/SP. Professor e palestrante. Autor de diversas obras jurídicas, dentre elas: Comentários à Lei de Execução Penal, Manual de Direito Penal, Lei de Drogas Comentada, Estatuto do Desarmamento, Provas Ilícitas e Tutela Penal da Intimidade, publicados pela Editora Juruá.