As imputações feitas a Jair Messias Bolsonaro, nos Inquéritos em curso na Polícia Federal, devem ser analisadas em dois momentos distintos: a situação do investigado no exercício da Presidência da República, entre 1º de janeiro de 2019 e 31 de dezembro de 2022, e após o término do mandato, quando regressou à condição de cidadão comum.
Como chefe do Poder Executivo, o Presidente da República se enquadrava nas disposições do Capítulo II, do Título IV, da Constituição de 5/10/1988. Responderia, se fosse o caso, pela prática de crimes de responsabilidade, previstos no Art. 85, a saber: delitos contra “a existência da União”, “o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes constitucionais das unidades da Federação”, “a segurança interna do País”, “a probidade da administração”, “o cumprimento das leis e das decisões judiciais” (incisos I, II, IV, VII).
O presidente Fernando Collor de Mello e a presidente Dilma Roussef foram acusados, processados e na gíria popular “impichados” e destituídos da presidência da República. Até hoje as opiniões se dividem, se houve, ou não, crime de responsabilidade.
Admitida a acusação contra o presidente, “por dois terços da Câmara dos Deputados, será ele submetido a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal, nas infrações penais comuns, ou perante o Senado Federal, nos crimes de responsabilidade”, sendo suspenso das de suas funções “nas infrações penais comuns, se recebida a denúncia ou queixa-crime pelo Supremo Tribunal Federal”, e, nos crimes de responsabilidade, “após a instauração do processo pelo Senado Federal” (Art. 86).
Até 31 de dezembro de 2022 não prosperou acusação formal da prática de crime de responsabilidade pelo presidente Jair Bolsonaro (Art. 51). Se houve, fato que desconheço, não foi processada. Encerrado o mandato, quando passa a ex-presidente e cidadão comum, Jair Bolsonaro não mais responderá por crimes de responsabilidade. Encontra-se sob jurisdição penal comum, mas na hipótese de ter cometido uma das figuras tipificadas pelo Código Penal.
Crimes de responsabilidade são julgados como crimes políticos. Daí a razão de o processo correr pela Câmara dos Deputados, para ser julgado no Senado Federal, convertido, momentaneamente, em tribunal especial, presidido pelo presidente do Supremo Tribunal Federal. Para dificultar a situação, de acordo com o parágrafo 4º do Art. 86, “O Presidente da República, na vigência do seu mandato, não pode ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício das suas funções”.
Tento inutilmente discutir o assunto à luz da Constituição. Sob essa ótica, Jair Bolsonaro não pode ser acusado de cometer crime de responsabilidade. Se conspirou com o objetivo de comprometer a existência da União, de impedir o livre exercício do Poder Legislativo e do Poder Judiciário, de colocar em risco a segurança interna do País, de impedir o cumprimento das leis e decisões judiciais, quando exercia a Presidência da República, deveria ter sido formalmente acusado, processado e punido com possível perda do mandato e de direitos políticos.
Não houve pedido de impeachment. Se houve, foi engavetado. Encerrado o mandato, Jair Bolsonaro ficou impossibilitado da prática de crime político. Voltou à esfera do Código Penal, cujo art. 4º prescreve: “Considera-se praticado o crime no momento da ação ou omissão, ainda que outro seja o momento do resultado”. Determina, também, que o crime é consumado “quando nele se reúnem todos os elementos de sua definição legal e tentado se “iniciada a execução, não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente”. Se existiram conversas, ficaram por aí, sem início material de execução.
A Polícia Federal investiga tardiamente supostos crimes do passado, políticos ou de responsabilidade. Parece-me impossível o enquadramento de Jair Bolsonaro em crime do Código Penal, cometido como cidadão comum após o término do mandato.
O caso não é simples. Lulistas e bolsonaristas se empenham como matilhas enfurecidas na defesa das respectivas posições. Se Bolsonaro cometeu crime de responsabilidade, desse problema já se safou. Se praticou crime comum, o relatório da Polícia Federal deverá dizê-lo com objetividade, para que o Ministério Público ofereça denúncia circunstanciada. Se for aceita, o réu será processado segundo as regras do devido processo legal, com amplo direito de defesa, sendo inadmissíveis provas colhidas sob coação.
Assim se faz no Estado Democrático de Direito.
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Almir Pazzianotto Pinto – Advogado.