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Violar prerrogativas dos advogados é crime – por Luiz Flávio Borges D’Urso

A advocacia é função essencial à administração da Justiça, como estabelece a Constituição Federal em seu artigo 133. O advogado não é mero participante do processo judicial, mas, o protagonista da defesa e da cidadania. Sua atuação assegura que o contraditório e a ampla defesa, cláusulas pétreas da ordem constitucional, se tornem realidade. No entanto, ainda hoje, em pleno Estado Democrático de Direito, multiplicam-se episódios de desrespeito às prerrogativas profissionais, frequentemente protagonizados por autoridades que, paradoxalmente, deveriam zelar pela observância da lei.

​É imperioso lembrar que violar prerrogativas do advogado é crime. O Estatuto da Advocacia e da OAB (Lei Federal nº 8.906/94), em seu artigo 7º- B, introduzido após uma longa luta institucional de 15 anos, dispõe: “Constitui crime a violação de direito ou prerrogativa do advogado, estabelecido nos incisos II, III, IV e V do caput do art. 7º desta Lei, punível com detenção de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa.”

​Esse dispositivo é fruto de uma batalha que iniciamos em 2004, quando presidi pela primeira vez a OAB/SP. Levamos a proposta de Criminalização das Violações de nossas Prerrogativas Profissionais aà Reunião do Colégio de Presidentes das seccionais da OAB de todo o Brasil, que aconteceu em Curitiba. Aprovada a proposta por unanimidade, teve início a luta que travamos durante os nove anos que presidi a OAB/SP e por mais seis anos em que estive como Conselheiro Federal da OAB, dando lugar a uma conquista histórica para a advocacia e para a cidadania.

​Apesar da vitória legislativa, que ocorreu pela Lei nº 13.869, de 2019 (Lei de Abuso de Autoridade), a qual alterou o Estatuto da Advocacia e entrou em vigor em janeiro de 2020, incluindo o artigo 7º- B, as violações e desrespeitos às nossas prerrogativas profissionais ainda persistem, e com muita frequência.

​Advogados continuam a ser constrangidos em audiências, têm negado acesso a autos, sofrem restrições arbitrárias no contato com clientes e, não raramente, são intimidados em Delegacias de Polícia, Tribunais de Justiça ou nas Comissões Parlamentares de Inquérito – CPIs. Tais atos não atingem apenas a dignidade do profissional, mas acima de tudo, comprometem os direitos fundamentais da cidadania a uma defesa plena.

​Recentemente temos visto colegas advogados, em pleno exercício profissional, notadamente em CPIs, tornarem-se alvos de chacotas, piadas e constrangimentos agressivos por parte de autoridades que não respeitam a lei e cometem, dessa forma, crime.

​Não bastasse o nosso Estatuto, no caso de CPIs, também a Lei nº 1.579/1952 (art. 3º, §2º), bem como os Regimentos Internos da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, asseguram a qualquer depoente, seja ele investigado ou testemunha, o direito de ser acompanhado e assistido por advogado, inclusive em sessões sigilosas.

​A negativa de acompanhamento de advogado, viola não apenas a lei, mas o próprio equilíbrio das investigações parlamentares. Pior ainda, é quando assistimos a um simulacro de obediência à lei, quando a CPI autoriza o acompanhamento do advogado, mas impede sua assistência ao cliente ou o uso da palavra “pela ordem”, com um sonoro e agressivo “cala a boca”.

​Esses direitos dos advogados, além da proteção legal, têm sido, reiteradamente, assegurados pelo Supremo Tribunal Federal, em diversos precedentes (HC 100.200/DF; HC 134.983/MC; MS 30.906/MC), firmando-se o entendimento de que o advogado pode comunicar-se reservadamente com seu cliente, sem restrições arbitrárias. Impedir esse contato é obstaculizar a própria defesa técnica, o que constitui grave afronta ao devido processo legal, além de um crime.

​No Brasil vigora o princípio “nemo tenetur se detegere”, segundo o qual ninguém pode ser obrigado a produzir prova contra si mesmo. O STF consolidou essa proteção (HC 79.812/SP; HC 171.438/DF), reconhecendo que cabe ao advogado assegurar que seu cliente não seja coagido a falar contra si. Qualquer medida que impeça o exercício desse direito, configura abuso de autoridade e o crime de violação de prerrogativas.

​O advogado, no exercício da defesa técnica, não pode ser impedido ou limitado de forma ilegal e ilegítima em sua atuação. Qualquer restrição arbitrária é crime, ferindo o devido processo legal e comprometendo a legitimidade do Estado Democrático de Direito.

​Diante dessas garantias legais à cidadania, é inadmissível que ainda se tolere a violação de prerrogativas de advogado. Quando ocorrer, há necessidade de uma reação institucional. As entidades representativas, em especial a OAB, têm o dever de agir processualmente, além do repúdio formal e do desagravo público. Embora esses gestos tenham valor simbólico, não são suficientes para conter as práticas reiteradas de desrespeito.

​É tempo de aplicar a lei em toda sua extensão. O artigo 7º- B do Estatuto da Advocacia não pode permanecer letra morta.

​Autoridades que violam prerrogativas precisam ser responsabilizadas civil e criminalmente. Somente quando essas autoridades forem processadas criminalmente e estiverem no banco dos réus, precisarão contratar um advogado para se defender. Talvez assim compreendam a gravidade de seus atos ilegais e passem a entender o nosso papel. Essa experiência é pedagógica e ajuda a ensinar aos violadores de nossas prerrogativas que esses direitos profissionais não são privilégios, mas garantias institucionais da própria cidadania.

​Também não nos esqueçamos de que eventuais ações indenizatórias contra autoridades, na esfera civil, garante-lhes o direito de regresso contra o Estado, mas a obrigação de indenizar decorrente de condenação penal, vai direto no bolso do violador das prerrogativas, para satisfazer o dano provocado com seu ato ilegal e criminoso.

​O respeito às prerrogativas profissionais do advogado não depende da boa vontade de autoridades, uma vez que se trata de imposição legal e constitucional. Ignorá-las, além de crime, é atentar contra o próprio sistema de Justiça.

​Por isso, não podemos admitir que a conquista histórica da tipificação penal da violação de prerrogativas seja esvaziada pela inércia. É hora de ação firme para que a OAB e as demais entidades classistas façam uso da arma que conquistamos, processando criminalmente os violadores de nossas prerrogativas e reafirmando, na prática, que o advogado precisa ser respeitado para que a cidadania também o seja.

​O fortalecimento da advocacia é o fortalecimento da cidadania e, por consequência, da própria democracia. Em defesa da cidadania e da advocacia, é hora de reagir. Convoco a advocacia brasileira, pela OAB e por nossas entidades classistas, a processar criminalmente as autoridades violadoras de nossas prerrogativas.

​Sem o respeito ao advogado e às nossas prerrogativas profissionais, não há contraditório, não há ampla defesa e, portanto, jamais haverá Justiça!

*Prof. Dr. Luiz Flávio Borges D’Urso é Advogado Criminalista, Mestre e Doutor em Direito Penal pela USP, Pós-Doutor pela Faculdade de Direito de Castilla-LaMancha (Espanha), Presidente da OAB/SP por três gestões (2004/2012), Presidente de Honra da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas (ABRACRIM), Presidente da Academia Brasileira de Direito Criminal (ABDCRIM), Vice-Presidente da Associação Comercial de SP (ACSP) e Conselheiro da Federação das Indústrias de SP (FIESP).

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