A advocacia é função essencial à administração da Justiça, como estabelece a Constituição Federal em seu artigo 133. O advogado não é mero participante do processo judicial, mas, o protagonista da defesa e da cidadania. Sua atuação assegura que o contraditório e a ampla defesa, cláusulas pétreas da ordem constitucional, se tornem realidade. No entanto, ainda hoje, em pleno Estado Democrático de Direito, multiplicam-se episódios de desrespeito às prerrogativas profissionais, frequentemente protagonizados por autoridades que, paradoxalmente, deveriam zelar pela observância da lei.
É imperioso lembrar que violar prerrogativas do advogado é crime. O Estatuto da Advocacia e da OAB (Lei Federal nº 8.906/94), em seu artigo 7º- B, introduzido após uma longa luta institucional de 15 anos, dispõe: “Constitui crime a violação de direito ou prerrogativa do advogado, estabelecido nos incisos II, III, IV e V do caput do art. 7º desta Lei, punível com detenção de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa.”
Esse dispositivo é fruto de uma batalha que iniciamos em 2004, quando presidi pela primeira vez a OAB/SP. Levamos a proposta de Criminalização das Violações de nossas Prerrogativas Profissionais aà Reunião do Colégio de Presidentes das seccionais da OAB de todo o Brasil, que aconteceu em Curitiba. Aprovada a proposta por unanimidade, teve início a luta que travamos durante os nove anos que presidi a OAB/SP e por mais seis anos em que estive como Conselheiro Federal da OAB, dando lugar a uma conquista histórica para a advocacia e para a cidadania.
Apesar da vitória legislativa, que ocorreu pela Lei nº 13.869, de 2019 (Lei de Abuso de Autoridade), a qual alterou o Estatuto da Advocacia e entrou em vigor em janeiro de 2020, incluindo o artigo 7º- B, as violações e desrespeitos às nossas prerrogativas profissionais ainda persistem, e com muita frequência.
Advogados continuam a ser constrangidos em audiências, têm negado acesso a autos, sofrem restrições arbitrárias no contato com clientes e, não raramente, são intimidados em Delegacias de Polícia, Tribunais de Justiça ou nas Comissões Parlamentares de Inquérito – CPIs. Tais atos não atingem apenas a dignidade do profissional, mas acima de tudo, comprometem os direitos fundamentais da cidadania a uma defesa plena.
Recentemente temos visto colegas advogados, em pleno exercício profissional, notadamente em CPIs, tornarem-se alvos de chacotas, piadas e constrangimentos agressivos por parte de autoridades que não respeitam a lei e cometem, dessa forma, crime.
Não bastasse o nosso Estatuto, no caso de CPIs, também a Lei nº 1.579/1952 (art. 3º, §2º), bem como os Regimentos Internos da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, asseguram a qualquer depoente, seja ele investigado ou testemunha, o direito de ser acompanhado e assistido por advogado, inclusive em sessões sigilosas.
A negativa de acompanhamento de advogado, viola não apenas a lei, mas o próprio equilíbrio das investigações parlamentares. Pior ainda, é quando assistimos a um simulacro de obediência à lei, quando a CPI autoriza o acompanhamento do advogado, mas impede sua assistência ao cliente ou o uso da palavra “pela ordem”, com um sonoro e agressivo “cala a boca”.
Esses direitos dos advogados, além da proteção legal, têm sido, reiteradamente, assegurados pelo Supremo Tribunal Federal, em diversos precedentes (HC 100.200/DF; HC 134.983/MC; MS 30.906/MC), firmando-se o entendimento de que o advogado pode comunicar-se reservadamente com seu cliente, sem restrições arbitrárias. Impedir esse contato é obstaculizar a própria defesa técnica, o que constitui grave afronta ao devido processo legal, além de um crime.
No Brasil vigora o princípio “nemo tenetur se detegere”, segundo o qual ninguém pode ser obrigado a produzir prova contra si mesmo. O STF consolidou essa proteção (HC 79.812/SP; HC 171.438/DF), reconhecendo que cabe ao advogado assegurar que seu cliente não seja coagido a falar contra si. Qualquer medida que impeça o exercício desse direito, configura abuso de autoridade e o crime de violação de prerrogativas.
O advogado, no exercício da defesa técnica, não pode ser impedido ou limitado de forma ilegal e ilegítima em sua atuação. Qualquer restrição arbitrária é crime, ferindo o devido processo legal e comprometendo a legitimidade do Estado Democrático de Direito.
Diante dessas garantias legais à cidadania, é inadmissível que ainda se tolere a violação de prerrogativas de advogado. Quando ocorrer, há necessidade de uma reação institucional. As entidades representativas, em especial a OAB, têm o dever de agir processualmente, além do repúdio formal e do desagravo público. Embora esses gestos tenham valor simbólico, não são suficientes para conter as práticas reiteradas de desrespeito.
É tempo de aplicar a lei em toda sua extensão. O artigo 7º- B do Estatuto da Advocacia não pode permanecer letra morta.
Autoridades que violam prerrogativas precisam ser responsabilizadas civil e criminalmente. Somente quando essas autoridades forem processadas criminalmente e estiverem no banco dos réus, precisarão contratar um advogado para se defender. Talvez assim compreendam a gravidade de seus atos ilegais e passem a entender o nosso papel. Essa experiência é pedagógica e ajuda a ensinar aos violadores de nossas prerrogativas que esses direitos profissionais não são privilégios, mas garantias institucionais da própria cidadania.
Também não nos esqueçamos de que eventuais ações indenizatórias contra autoridades, na esfera civil, garante-lhes o direito de regresso contra o Estado, mas a obrigação de indenizar decorrente de condenação penal, vai direto no bolso do violador das prerrogativas, para satisfazer o dano provocado com seu ato ilegal e criminoso.
O respeito às prerrogativas profissionais do advogado não depende da boa vontade de autoridades, uma vez que se trata de imposição legal e constitucional. Ignorá-las, além de crime, é atentar contra o próprio sistema de Justiça.
Por isso, não podemos admitir que a conquista histórica da tipificação penal da violação de prerrogativas seja esvaziada pela inércia. É hora de ação firme para que a OAB e as demais entidades classistas façam uso da arma que conquistamos, processando criminalmente os violadores de nossas prerrogativas e reafirmando, na prática, que o advogado precisa ser respeitado para que a cidadania também o seja.
O fortalecimento da advocacia é o fortalecimento da cidadania e, por consequência, da própria democracia. Em defesa da cidadania e da advocacia, é hora de reagir. Convoco a advocacia brasileira, pela OAB e por nossas entidades classistas, a processar criminalmente as autoridades violadoras de nossas prerrogativas.
Sem o respeito ao advogado e às nossas prerrogativas profissionais, não há contraditório, não há ampla defesa e, portanto, jamais haverá Justiça!
*Prof. Dr. Luiz Flávio Borges D’Urso é Advogado Criminalista, Mestre e Doutor em Direito Penal pela USP, Pós-Doutor pela Faculdade de Direito de Castilla-LaMancha (Espanha), Presidente da OAB/SP por três gestões (2004/2012), Presidente de Honra da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas (ABRACRIM), Presidente da Academia Brasileira de Direito Criminal (ABDCRIM), Vice-Presidente da Associação Comercial de SP (ACSP) e Conselheiro da Federação das Indústrias de SP (FIESP).