Pasmem, mas é verdade.
Houve pedido expresso da Polícia Federal para o monitoramento pessoal do ex-presidente Bolsonaro dentro de sua própria casa.
Tal medida, caso deferida, violaria não apenas a sua esfera mais íntima, mas também a de sua esposa e de eventual filho ou outro parente que lá resida.
De forma sucinta, a intimidade pode ser definida como o direito de estar só, o direito ao recato, de não ser importunado e de poder resguardar seus segredos. Fundamenta-se justamente em aspectos que interessam apenas às pessoas que dela participam. São fatos da vida que o indivíduo não deseja tornar públicos, porque não importam ao conhecimento alheio e cuja revelação pode gerar vexame, embaraço ou constrangimento.
Enquanto a intimidade representa o círculo mais restrito da vida pessoal, a vida privada constitui uma esfera mais ampla, embora igualmente protegida pelo ordenamento jurídico. Esta diz respeito ao cotidiano do indivíduo, mas sem atingir as camadas mais profundas da intimidade.
A casa, por sua vez, é o que há de mais íntimo na vida das pessoas. Não é possível falar em direito à intimidade sem mencionar o lar. É nele que os indivíduos passam a maior parte de suas vidas, guardam seus segredos e encontram refúgio do mundo exterior. A residência é o espaço em que cada um pode recolher-se ao seu “eu” e exercer plenamente o direito de estar só.
Por essa razão, a inviolabilidade do domicílio é expressamente assegurada pela Constituição Federal, bem como pelo Código Penal, que tipifica como crime a invasão da casa alheia fora das hipóteses legais.
Com efeito, sem o consentimento dos moradores, só é possível ingressar em domicílio em caso de flagrante delito, desastre, para prestar socorro, ou ainda, durante o dia, por ordem judicial (art. 5º, XI, da CF, e art. 150, § 3º, do CP).
Ressalte-se que a ordem judicial para entrada ou permanência no interior da residência só pode ser cumprida durante o dia. À noite, apenas nas hipóteses excepcionais de flagrante, desastre ou socorro. Isso porque, além do monitorado, outros familiares podem residir no local, o que torna a medida ainda mais grave.
Aliás, o agente público, seja quem for, que invadir ou adentrar, clandestina ou astuciosamente, ou à revelia da vontade do ocupante, imóvel alheio ou suas dependências, ou nele permanecer nas mesmas condições, sem determinação judicial ou fora das condições estabelecidas em lei, comete crime de abuso de autoridade (art. 22, da Lei nº 13.869/2019).
Se realmente houvesse a necessidade de um monitoramento tão intenso, a ponto de policiais permanecerem dentro da casa de alguém, algo absolutamente inédito em nosso ordenamento e juridicamente impossível, isso importaria a existência de perigo concreto de fuga de tal magnitude que justificaria, em verdade, a decretação da prisão preventiva.
É evidente, portanto, que nenhuma medida judicial nesse sentido foi deferida.
A simples cogitação de hipótese tão aberrante já causa perplexidade. Se um pedido como esse fosse realmente acolhido pelo Judiciário, estaríamos diante de uma das maiores heresias jurídicas que presenciei em toda a minha carreira, que, diga-se, não é curta.
Autor: César Dario Mariano da Silva – Procurador de Justiça – MPSP. Mestre em Direito das Relações Sociais – PUC/SP. Especialista em Direito Penal – ESMP/SP. Professor e palestrante. Autor de diversas obras jurídicas, dentre elas: Comentários à Lei de Execução Penal, Manual de Direito Penal, Lei de Drogas Comentada, Estatuto do Desarmamento, Provas Ilícitas e Tutela Penal da Intimidade, publicadas pela Editora Juruá.










