Home / Opinião / Como controlar externamente o STF? – por Cesar Dario

Como controlar externamente o STF? – por Cesar Dario

A inusitada decisão do ministro Gilmar Mendes, que alterou a redação e a interpretação de legislação vigente, válida e eficaz por mais de 70 anos, reacendeu o debate acerca da inexistência de um controle externo efetivo sobre os atos dos membros da Suprema Corte.

Não vou entrar na questão da possível usurpação da função constitucional do Poder Legislativo e nem da quebra do princípio da separação dos Poderes da República, um dos pilares estruturantes do nosso sistema constitucional.

Vou me ater apenas à discussão, já amplamente travada na imprensa e nas redes sociais, acerca de limites constitucionais que não podem ser ultrapassados, sob pena de ruptura do sistema de freios e contrapesos, mecanismo essencial para o equilíbrio e a convivência harmônica entre os Poderes da República.

Todo poder deve ser fiscalizado e controlado por outro. Cuida-se do que a doutrina chama de sistema de freios e contrapesos, que existe em qualquer estado democrático de direito.

Contudo, no Brasil, que sempre está na contramão da história, não é bem assim.

O Supremo Tribunal Federal, órgão de cúpula do Poder Judiciário, responsável pela guarda da Constituição Federal, na prática, até os dias atuais, mesmo após a promulgação da Constituição Federal de 1988, não se submete a nenhum tipo de controle interno ou externo.

Quando me refiro ao Pretório Excelso, falo especificamente de seus ministros, uma vez que as contas da Corte são fiscalizadas pelo Tribunal de Contas da União.

Os ministros não se submetem à fiscalização e controle do Conselho Nacional de Justiça e nem de uma corregedoria interna.

Em tese, o controle externo da Corte deveria ser realizado pelo Senado Federal. No entanto, vimos o que ocorreu no apagar das luzes do mandato anterior do senador Davi Alcolumbre como presidente da Casa. Simplesmente, arquivou todos os pedidos de impeachment apresentados contra alguns ministros da Excelsa Corte. Já o senador Rodrigo Pacheco, também na presidência do Senado, na mesma linha do seu antecessor, não deu andamento a nenhum dos diversos pedidos de apuração de crimes de responsabilidade imputados a ministros da Suprema Corte. E, até o presente momento, não se tem notícia de que um processo de impeachment tenha sido instaurado contra um ministro do Supremo Tribunal Federal, malgrado haja diversos pedidos apresentados.

A Lei nº 1.079/1950 e a própria Carta Magna (art. 85) trazem os diversos casos em que haverá crime de responsabilidade cometido por um ministro do STF, que dará ensejo a um processo de impeachment, a ser julgado pelo Senado Federal (art. 52, II, da CF), o que parece ser impossível de ocorrer pelos mais variados motivos.

Vou dar um exemplo muito simples e de conhecimento de todos. Quando é arguida a suspeição de um deles em um dado processo sabemos que a questão dificilmente é colocada em pauta para julgamento ou sempre é afastada. E o motivo é bem simples: se for reconhecida a suspeição deverá ser instaurado processo de impeachment perante o Senado Federal (art. 39, 2, da Lei nº 1.079/1950).

Suspeição é o estado de espírito do magistrado que o impede de julgar de forma isenta por estabelecer relação subjetiva (pessoal) com uma das partes (ou seus advogados).

Em casos criminais, quem traz as hipóteses de suspeição é o Código de Processo Penal. Diz o artigo 254, inciso I, deste diploma legal, que é causa de suspeição, dentre outras hipóteses, ser o juiz amigo íntimo ou inimigo capital de qualquer das partes.

No que tange ao processo civil, que engloba ações por atos de improbidade administrativa, também é considerado suspeito o juiz que for amigo íntimo ou inimigo capital de qualquer das partes ou de seus advogados (art. 145, inciso I, do CPC).

Basta, dessa forma, que o magistrado, podendo ser juiz, desembargador ou ministro dos tribunais superiores, profira decisão em quaisquer dessas situações.

Não é suficiente, porém, a simples amizade ou relação de coleguismo de trabalho, ou a ocorrência de alguma rusga, mas que a amizade seja estreita e que a inimizade seja manifesta, severa.

Essa relação subjetiva impeditiva de julgamento imparcial, nem sempre admitida pelo magistrado, pode ser demonstrada objetivamente por meio de prova documental ou testemunhal. As mais comuns são: frequência à casa de uma das partes; constantes telefonemas sem relação profissional com elas; defesas públicas de tese que seja favorável ou desfavorável com o propósito de beneficiar ou prejudicar as partes processuais; atritos anteriores sérios com uma das partes; declarações públicas que indiquem inimizade latente com elas; ou, por outro lado, forte amizade já antiga e notória com o autor ou réu de ação de qualquer natureza, dentre outras situações em que o magistrado julgará o processo.

Anoto que não é exigida decisão judicial anterior que declare a suspeição para que se configure o crime de responsabilidade. A infração se consuma com o desrespeito às normas processuais (e não decisão judicial) que impeçam o ministro de decidir quando a causa envolver pessoa (ou advogado) com a qual mantenha amizade íntima ou dela seja inimigo capital.

Com efeito, no caso de indícios da ocorrência de crime de responsabilidade, pode ser pleiteado por qualquer cidadão o impedimento (impeachment) de ministro do STF, cujo procedimento é regido pela Lei nº 1.079/1950.

Contudo, quando o pedido é apresentado ao Senado, é arquivado por seu presidente e sequer apreciado pela Mesa, como deveria ser, nos exatos termos do que dispõe o artigo 44 da Lei nº 1.079/1950.

A Mesa do Senado é composta, não apenas pelo presidente da Casa, mas também por dois Vice-presidentes e quatro secretários (art. 46 do RI do Senado).

Assim, a Mesa do Senado não é um órgão unipessoal, mas colegiado, responsável por deliberações conjuntas, dentre elas a de recebimento e análise de pedidos de impeachment formulados contra ministros da Suprema Corte e Procurador-geral da República, conforme o disposto no artigo 44 da Lei nº 1.079/1950.

Não está enumerada entre as diversas e importantes funções da presidência do Senado o arquivamento dos pedidos de impeachment dos ministros do Supremo Tribunal Federal (art. 48 do RI do Senado). Não há nenhuma norma que dê suporte a esse proceder. Aliás, o inciso XXXIII do dispositivo diz expressamente que o presidente deverá resolver, ouvido o plenário, qualquer caso não previsto no regimento.

A própria Lei nº 1.079/1950, que não pode ser contrariada por normas internas do Senado, por ser superior hierarquicamente, no seu artigo 48, dispõe: “Se o Senado resolver que a denúncia não deve constituir objeto de deliberação, serão os papeis arquivados”. Essa decisão do Senado, e não do seu presidente, será tomada após a deliberação de uma comissão especial eleita para opinar sobre o pedido. No caso de ser decidido pela instauração do processo de impeachment, a Mesa remeterá cópia das peças ao denunciado para responder à acusação, que seguirá o trâmite previsto nos artigos 58 e seguintes, exceto quanto aos crimes descritos no artigo 10 praticados pelo Presidente do Supremo Tribunal Federal e Procurador-geral da República, que observarão o procedimento trazido na Lei nº 8.038/1990, que cuida dos processos de competência originária dos Tribunais Superiores.

Quando se trata de suspeita da prática de crime comum, para ser instaurada investigação pela Procuradoria Geral da República ou pela Polícia Federal contra um ministro do STF, faz-se necessária prévia autorização da Corte, que poderá trancar qualquer uma que seja iniciada sem a sua aquiescência.

No campo correcional, isto é, pela prática de infrações funcionais, em tese, os próprios ministros são responsáveis por corrigir uns aos outros, que, como é fato notório, não ocorre. Assim, não há controle interno por meio de uma corregedoria.

O STF é o único Órgão existente no Brasil que não se submete, na prática, a nenhum tipo de controle externo e, por isso, muitas vezes a conduta dos ministros é questionada e, como sabemos, sem que ocorra a devida apuração dos fatos.

É certo que, na maioria das vezes, não era mesmo o caso de ser instaurada uma investigação. Mas, em muitas outras, pelo menos no campo disciplinar, seria necessária dar uma resposta efetiva para a sociedade a fim de que não paire nenhuma dúvida a respeito da lisura de determinado ato.

Por outro lado, os ministros devem ser protegidos contra as pressões externas, uma vez que suas decisões podem influenciar na vida dos brasileiros e no destino da nação. No entanto, não é bom para a democracia que exista um órgão que não seja controlado externamente.

Os demais magistrados brasileiros são fiscalizados e seus respectivos tribunais controlados administrativamente por órgãos internos e pelo Conselho Nacional de Justiça, que, com todas as críticas que podem ser feitas, bem ou mal, exerce algum tipo de controle disciplinar no tocante à conduta funcional dos Magistrados. O que vale para todos os demais Tribunais, inclusive para o Ministério Público, que é controlado externamente pelo Conselho Nacional do Ministério Público, teria de ocorrer também para o STF, que deveria ter a conduta de seus membros fiscalizada, mesmo que em situações excepcionais.

E, após essa inusitada decisão liminar, que, muito provavelmente, será referendada pela maioria dos demais ministros, o problema se agrava ainda mais, pois estar-se-á, na prática, criando um superpoder da República, superior aos demais e destituído de qualquer forma efetiva de controle. Tal cenário é absolutamente incompatível com um Estado Democrático de Direito, que pressupõe a independência e a harmonia entre os Poderes, de modo que nenhum deles se sobreponha aos outros e que exista controle recíproco capaz de impedir abusos e arbítrios.

E como solucionar essa questão?

Há algumas hipóteses.

Uma das soluções mais plausíveis, e que não exige qualquer alteração constitucional, é que o Presidente do Senado Federal simplesmente cumpra as atribuições que lhe são conferidas pela legislação e encaminhe o pedido de instauração do processo de impeachment à Mesa Diretora para deliberação, como expressamente determina a Lei 1.079/1950. Em tal cenário, a abertura do processo dependeria apenas de vontade política e da escolha dos próprios senadores a respeito de quem ocupará a Presidência da Casa.

Todavia, com a decisão ainda liminar proferida pelo ministro do STF, o quadro se altera substancialmente: passa a ser requisito que o pedido seja formulado exclusivamente pelo Procurador-Geral da República, restringindo de forma significativa a possibilidade de instauração do processo para apuração de eventual crime de responsabilidade, que poderia, até então, ser requerido por qualquer cidadão.

Além disso, ainda que o processo venha a ser regularmente instaurado, a decisão liminar acabou por elevar, de forma absolutamente incompatível com o ordenamento vigente, o quórum necessário tanto para seu prosseguimento quanto para o consequente afastamento provisório do ministro investigado. Passou-se a exigir a aprovação de 2/3 dos senadores, em flagrante contrariedade à regra da maioria simples dos presentes, expressamente prevista na Constituição e na legislação de regência.

Cumpre observar que o quórum de 2/3 dos membros do Senado Federal destina-se exclusivamente à condenação e ao afastamento definitivo do ministro, conforme preceitua o art. 52, parágrafo único, da Constituição da República. Exigir o mesmo quórum qualificado para o afastamento provisório, medida de natureza cautelar, anterior ao julgamento do mérito, revela não apenas a ausência de suporte normativo, mas também a total inversão da lógica histórica e sistemática que sempre diferenciou, por coerência e proporcionalidade, os requisitos formais entre afastamento cautelar e perda definitiva do cargo.

Outra possibilidade seria submeter as condutas dos ministros do Supremo Tribunal Federal à apreciação do Conselho Nacional de Justiça, como já ocorre com os demais membros do Poder Judiciário. Entretanto, essa hipótese enfrenta evidente problema de hierarquia institucional, pois as decisões do CNJ são passíveis de revisão pelo próprio STF. Isso significa que, na prática, pode haver corporativismo e consequente óbice à instauração de qualquer investigação, ou ainda que o resultado dela, bem como de eventual processo administrativo disciplinar, seja posteriormente reformado pela própria Corte.

De fato, o STF já firmou entendimento no sentido de que a conduta de seus ministros não pode ser examinada pelo CNJ, sob o argumento de que não seria admissível que um órgão cujos atos são revisados pelo Supremo exercesse controle disciplinar sobre seus próprios membros.

A última hipótese seria a criação, mediante emenda constitucional, de um órgão independente destinado a analisar a conduta dos membros da Excelsa Corte. Uma espécie de tribunal composto por representantes das Casas Legislativas, do Poder Judiciário, do Ministério Público, da OAB e da sociedade civil, com competência para receber pedidos de investigação, instruir procedimentos e julgar as condutas imputadas aos ministros do STF em todas as suas esferas.

A criação de tal órgão buscaria afastar a possibilidade de corporativismo, fenômeno que, lamentavelmente, pode ocorrer quando membros de uma mesma instituição tendem a proteger uns aos outros. Tal órgão asseguraria maior imparcialidade e transparência no exame de eventuais desvios funcionais.

O que não é possível é existir um órgão que não tenha a conduta de seus membros fiscalizada externamente, uma vez que o controle que poderia ser exercido pelo Senado Federal, que é um controle político, muito dificilmente advirá, até porque, muitas vezes, depende da apuração dos fatos pela Procuradoria Geral da República ou pela Polícia Federal, que somente ocorrerá com a autorização do próprio Supremo Tribunal Federal.

Esse cenário gera um evidente círculo de autodefesa institucional que, na prática, inviabiliza a responsabilização efetiva de ministros da Corte, reforçando a necessidade de mecanismos externos de fiscalização que sejam minimamente independentes e funcionais.

Autor: César Dario Mariano da Silva – Procurador de Justiça – MPSP. Mestre em Direito das Relações Sociais – PUC/SP. Especialista em Direito Penal – ESMP/SP. Professor e palestrante. Autor de diversas obras jurídicas, dentre elas: Comentários à Lei de Execução Penal, Manual de Direito Penal, Lei de Drogas Comentada, Estatuto do Desarmamento, Provas Ilícitas e Tutela Penal da Intimidade, publicadas pela Editora Juruá.

Marcado:

Deixe um Comentário