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O desafio da ética no uso da inteligência artificial no contexto educacional brasileiro – por Ênio César

Em diversos momentos da minha vida estudantil, durante a aplicação de provas, ouvi professores dizerem que até poderíamos colar, só que eles não poderiam ver, pois as consequências seriam drásticas. Essa advertência-ameaça, ainda propalada em alguns espaços escolares, traz consigo uma verdade: o livre arbítrio, mas comunica algo pernicioso para a formação de crianças e adolescentes: você pode escolher o errado, mas tem de “fazer bem feito” para não ser descoberto. Obviamente, não era a intenção do professor, porém era o que se transmitia.

No universo acadêmico, a situação não foi muito diferente: a luta contra o famigerado plágio, especialmente, nos trabalhos finais. Mais uma vez, a “lei do menor esforço” ganha relevância. E, lamentavelmente, poucos se importam com os impactos dessa atitude ilícita e desastrosa para o desenvolvimento da inteligência. Aliás, o que é pior, é comum vermos transgressores a contar vantagem pelos seus “brilhantes feitos”!

Talvez esse quadro justifique nossa grande preocupação com o desenfreado desenvolvimento da inteligência artificial. Uma ferramenta que, como tantas outras, poderia ser vista e utilizada como potencializadora da “inteligência natural” desperta desconfiança e amedronta por causa do famoso e internacionalmente conhecido “jeitinho brasileiro”. Não raro, por exemplo, deparamos com a preocupação de sermos operados futuramente por médicos que não levaram os estudos a sério e fizeram seus trabalhos com o uso da IA.

Como publicou uma psicóloga da Unicamp — cujo nome não lembro — lá pelos idos de 1990 ou 2000, educamos os jovens para que não façam algo errado porque estão sendo vistos, e não porque não é certo. Salvo engano, o artigo tinha como mote a placa presente em muitos estabelecimentos comerciais até hoje: “Sorria, você está sendo filmado”. 

Desde a leitura desse precioso artigo, já atuando como professor, cuidei para não reproduzir o que ouvira como estudante e sempre enfatizei os aspectos éticos e pedagógicos da cola para o processo educacional, ou seja, os efeitos danosos dessa postura: a desonestidade, a injustiça, a autossabotagem, os prejuízos à relação ensino-aprendizagem, entre outros.

Por diversas vezes, provoquei os estudantes questionando o que era mais valioso: uma nota mediana alcançada com esforço e honestamente ou uma nota alta obtida por meios ilícitos? Confesso que, por medo de uma resposta infeliz, rapidamente esclareci tratar-se de uma pergunta retórica e acrescentava que não precisavam responder.

Alguns educadores podem considerar esse discurso como eufêmico e demasiado idealista. Vejo diferente, porém. Ainda que não impeça a ilicitude, arraigada em nossa educação pela cultura da nota, deixa claro que não é uma atitude adequada e reforça valores fundamentais para a formação de um bom cidadão.

Não é só sobre a IA!

O que está em questão não é a IA, mas sim, mais uma vez, nossa relação com o conhecimento e com a sociedade. Em algum momento, foram as enciclopédias, depois o Google. Obviamente, é incomparável o poder das novas ferramentas, inclusive o de ludibriar, em relação à definição de autoria. Não é possível que encaremos como razoável alguém assumir a propriedade do que não produziu para alcançar um objetivo ou tirar proveito em determinada situação. É a legitimação do dito distorcido: “nada se cria, tudo se copia”. (Menos mau se, ao menos, forem dados os créditos a quem de direito!)

A pergunta que não quer calar — e desta vez não é retórica — é: que fazer para incutir nos educandos os valores do conhecimento e da ética, de modo que estes se sobreponham aos interesses e ambições individuais? Se encontrarmos a resposta, certamente teremos o caminho para o aprimoramento da inteligência natural, da inteligência artificial e, por conseguinte, da evolução humana.

Ênio César de Moraes Fontes*: poeta e professor. Atualmente é coordenador do ensino médio do Colégio Presbiteriano Mackenzie Brasília (CPMB) e professor da Secretaria de Educação do Distrito Federal (SEE-DF).

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