A falência operacional da Enel durante o vendaval histórico que atingiu São Paulo não pode ser tratada como simples efeito climático. O ciclone extratropical apenas expôs, de forma dramática, o que especialistas e autoridades já apontavam há anos: a concessionária opera em desacordo com a Constituição Federal, com o Código de Defesa do Consumidor, com a Lei de Concessões (Lei 8.987/1995) e com as normas da Aneel, configurando uma violação estrutural dos direitos fundamentais da população e do regime jurídico que rege serviços públicos essenciais.
Mais de 2 milhões de moradores ficaram no escuro, embora a Enel apresente números significativamente menores. Em entrevista à GloboNews, a própria empresa admitiu que grandes condomínios verticais — alguns com 400, 500 ou mais famílias — são contabilizados como “uma única ligação”, devido à medição centralizada. Ou seja: quando a Enel declara “um imóvel sem energia”, pode estar omitindo centenas de famílias afetadas. Essa distorção estatística reduz artificialmente a percepção pública do colapso e esconde a dimensão real do dano humano.
Hospitais dependeram de geradores, pacientes correram risco, pequenos comércios fecharam, indústrias pararam, bairros escuros sofreram aumento de furtos e acidentes, idosos dependentes de aparelhos elétricos ficaram vulneráveis. O prejuízo ultrapassa R$ 500 milhões, mas o impacto humano permanece impossível de mensurar.
A Enel violou pilares centrais do Direito Público brasileiro. O princípio da continuidade do serviço público, previsto no art. 175 da Constituição e detalhado na Lei 8.987/95, foi frontalmente rompido. O princípio da eficiência (art. 37 da Constituição) foi ignorado diante da falta de equipes, manutenção insuficiente e ausência de resposta emergencial adequada. Quebrou-se também o dever de adequação, segurança e qualidade, previsto nos arts. 6º e 22 do CDC e no art. 7º da Lei de Concessões, que exige prestação segura, contínua, atualizada e eficaz.
A doutrina clássica confirma isso. O Professor Antônio Cecílio Moreira Pires, referência do Mackenzie em Direito Administrativo e Concessões Públicas, ensina que a concessionária deve garantir prestação eficiente, planejamento prévio, investimentos permanentes e capacidade de resposta plena em situações de emergência; a violação desses deveres configura infração contratual grave, acionando a responsabilidade do concessionário e os instrumentos de intervenção estatal previstos na Lei 8.987/95. Nada disso foi observado pela Enel — e a crise o escancarou de maneira contundente.
A Lei de Concessões exige, nos arts. 31 e 32, planos de contingência operacionais robustos, capazes de enfrentar eventos excepcionais. A ausência de plano efetivo — evidenciada pela lentidão, falta de equipes, falta de caminhões e desorganização — demonstra, segundo a doutrina de Moreira Pires, “inexecução contratual qualificada, que pode justificar desde intervenção até caducidade”.
Além disso, a responsabilidade da concessionária é objetiva, conforme o art. 37, §6º da Constituição e o art. 14 do CDC. Basta o dano e a falha — ambos incontestáveis — para gerar dever de indenizar. A violação atinge inclusive o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), já que compromete saúde, segurança, mobilidade, educação e a própria vida das pessoas.
A doutrina penal e constitucional reforça a gravidade. Juristas como Luiz Flávio Borges D’Urso, Ives Gandra Martins e Kiyoshi Harada afirmam que, quando a omissão de uma concessionária coloca vidas em risco e compromete direitos fundamentais, a responsabilização pode ultrapassar as esferas civil e administrativa e alcançar a responsabilidade penal, especialmente quando há risco concreto à coletividade — exatamente o cenário visto em São Paulo.
A Prefeitura de São Paulo, sob o prefeito Ricardo Nunes, atua há meses cobrando, fiscalizando e responsabilizando a Enel: acionou a Procuradoria Geral do Município, abriu processos administrativos por repetidas falhas, protocolou representações formais à Aneel e ao Ministério de Minas e Energia, produziu relatórios técnicos com evidências de negligência estrutural, fiscalizou presencialmente a atuação (ou ausência) das equipes da Enel e solicitou formalmente a análise da caducidade da concessão, a medida mais dura prevista em lei. Durante o apagão, mobilizou Defesa Civil, subprefeituras e equipes técnicas para liberar vias, remover árvores e acelerar reparos.
O Governo do Estado, sob o governador Tarcísio de Freitas, também atuou com firmeza: reforçou o monitoramento climático e técnico, enviou equipes estaduais de apoio, pressionou a Aneel por fiscalização rigorosa, exigiu prazos reais de restabelecimento e cobrou transparência da empresa. Município e Estado atuaram unidos, de forma contínua e coordenada, enquanto a concessionária falhava reiteradamente.
A ausência prolongada de energia gerou violação evidente de direitos fundamentais: saúde, segurança, trabalho, educação, dignidade e integridade física. Energia elétrica não é luxo; é infraestrutura vital.
A Lei de Concessões prevê medidas severas: multas, imposição de investimentos compulsórios, intervenção, bloqueio de receitas e até a caducidade — extinção da concessão por inexecução do contrato. Diante da reincidência, da negligência operacional e da incapacidade estrutural demonstrada, todas essas medidas devem ser consideradas imediatamente.
E São Paulo precisa fazer as perguntas inevitáveis:
Até quando a cidade tolerará vulnerabilidade energética imposta por uma concessionária que ignora a lei?
Até quando eventos climáticos serão usados como desculpa para negligência estrutural?
Até quando milhões de famílias serão penalizadas por uma operação incapaz e desorganizada?
São Paulo exige respeito.
São Paulo exige luz.
São Paulo exige aplicação rigorosa da lei.
Walter Ciglioni
Jornalista, Presidente do Projeto Educacional Minha Escola é o Canal. Membro da OAB-SP nas Comissões de Direito Constitucional, Direito Tributário, Política Criminal e Penitenciária e Meio Ambiente. Ex-candidato ao Governo do Estado de São Paulo










