A situação das joias e outros presentes recebidos por Bolsonaro vem causando polêmica, notadamente porque existe um limbo jurídico do que é patrimônio do presidente ou da União.
Não há norma jurídica clara a esse respeito, pelo contrário, existe apenas uma decisão do Tribunal de Contas da União, que faz uma interpretação elástica de uma norma do Decreto nº 4344/2002, que, no artigo 3º, dispõe:
“Os acervos documentais privados dos presidentes da República são os conjuntos de documentos, em qualquer suporte, de natureza arquivística, bibliográfica e museológica, produzidos sob as formas textual (manuscrita, datilografada ou impressa), eletromagnética, fotográfica, filmográfica, videográfica, cartográfica, sonora, iconográfica, de livros e periódicos, de obras de arte e de objetos tridimensionais. Parágrafo único. Os acervos de que trata o caput não compreendem: I – (…); II – os documentos bibliográficos e museológicos recebidos em cerimônias de troca de presentes, nas audiências com chefes de Estado e de Governo por ocasião das “Visitas Oficiais” ou “Viagens de Estado” do presidente da República ao exterior, ou quando das “Visitas Oficiais” ou “Viagens de Estado” de chefes de Estado e de Governo estrangeiros ao Brasil”.
Interpretando esse dispositivo de forma muito abrangente, o Tribunal de Contas da União, por ausência de norma legal ou administrativa específica, chegou à conclusão de que o dispositivo “apenas admite a conclusão de que não só os documentos bibliográficos e museológicos, recebidos em eventos formalmente denominados de “cerimônias de troca de presentes”, devem ser excluídos do rol de acervos documentais privados dos presidentes da República, mas, também, todos os presentes, da mesma natureza, recebidos nas audiências da referida autoridade com outros chefes de estado ou de governo, independentemente do nome dado ao evento pelos cerimoniais e o local que aconteceram” (Processo: TC 011.591/2016-1, j em 31.08.2016).
Com efeito, de acordo com o TCU, podem integrar o acervo particular do Presidente da República, apenas os itens de natureza personalíssima, como medalhas ou objetos personalizados, ou de consumo direto, tais como bonés, camisetas, gravatas, chinelos, perfumes, dentre outros.
Não vou analisar o elemento constitutivo do tipo penal que está sendo empregado (peculato-apropriação), o que já o fiz em artigo publicado na Orbisnews com o título: “Os presentes recebidos por Bolsonaro” (https://orbisnews.com.br/os-presentes-recebidos-por-bolsonaro-por-cesar-dario/).
Quero tratar do erro em matéria penal, que pode implicar a não responsabilização penal de todos os envolvidos nos fatos apurados pela Polícia Federal, que ainda não foram analisados pelo titular da ação penal pública, o Ministério Público.
O erro que nos interessa é o de proibição, que vem previsto no artigo 21 do Código Penal, que diz: “O desconhecimento da lei é inescusável. O erro sobre a ilicitude do fato, se inevitável, isenta de pena; se evitável, poderá diminuí-la de um sexto a um terço. Parágrafo único. Considera-se evitável o erro se o agente atua ou se omite sem a consciência da ilicitude do fato, quando lhe era possível, nas circunstâncias, ter ou atingir essa consciência”.
Enquanto no erro de tipo (art. 20 do CP) o agente não sabe o que faz, no erro de proibição ele sabe, mas pensa sinceramente que sua atitude é lícita, uma vez que não tem ou não lhe é possível o conhecimento da ilicitude do fato. Com efeito, v.g, se alguém se apodera de bolsa alheia que pensa ser a sua, haverá erro de tipo; no entanto, se pensa que pode se apoderar dessa bolsa para saldar uma dívida da qual o dono é o seu devedor, haverá erro de proibição.
No erro de proibição o agente supõe, por erro, que age licitamente ou que exista causa que exclua a ilicitude do fato (art. 21, caput, do CP). Há ignorância quanto à existência ou conteúdo da norma ou erro quanto à sua interpretação, levando o sujeito a crer equivocadamente estar agindo de acordo com o direito e não estar praticando ilícito nenhum.
É certo que o desconhecimento da lei é inescusável (art. 21, caput, 1ª parte, do CP). A todos é devido o acatamento da lei e não é possível alegar seu desconhecimento para justificar a prática de um ilícito qualquer, sendo aplicável o dogma jurídico: “ignorantia legis neminem excusat”. A partir do momento em que a lei é publicada presume-se de forma absoluta seu conhecimento por todos, o que se faz imprescindível para que nosso sistema legal possa vigorar. Aliás, essa presunção também é prevista no art. 3º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro: “Ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece”. Cuida-se do conhecimento formal da lei, não abrangendo seu conteúdo, onde estão contidas as normas. Embora o desconhecimento formal da lei não exclua a culpabilidade, poderá funcionar como atenuante genérica, minorando a pena (art. 65, II, do CP).
No erro de proibição não há o mero desconhecimento formal da lei, mas ignorância ou errônea interpretação sobre o caráter ilícito do fato. O sujeito não tem ou não lhe é possível conhecer a ilicitude de sua conduta. Ele se equivoca e pensa sinceramente que está agindo acobertado pelo direito.
O sujeito pode conhecer a existência formal da lei, mas não o conteúdo de suas normas. Pode conhecer a norma jurídica proibitiva, mas não adequadamente, errando em sua interpretação. Nesses casos, poderá estar presente o erro de proibição, desde que ocorra ignorância ou errônea interpretação sobre o caráter ilícito do fato, levando o sujeito a agir ilicitamente na firme convicção de estar atuando dentro da legalidade.
Destarte, a mera alegação de desconhecimento da lei não favorece ao sujeito, ao passo que a impossibilidade de conhecer a ilicitude do fato ou a regra de proibição pode excluir a culpabilidade (potencial conhecimento da ilicitude) ou reduzir a pena.
Trazendo para a hipótese em comento pode Bolsonaro e as demais pessoas envolvidas nos fatos, por erro, terem suposto estar agindo amparado pelo direito ao alienar os presentes recebidos de chefes de governos estrangeiros em cerimônias de trocas de presentes.
Neste caso, se o sujeito efetivamente incorrer em erro e ele for invencível ou escusável, há exclusão da culpabilidade (potencial conhecimento da ilicitude) e ele ficará isento de pena (art. 21, caput, 2ª parte). A sentença, no caso, é absolutória. Ocorre esta espécie de erro quando não poderia ter sido evitado por um homem comum, que utilizou da normal diligência.
Por outro lado, o erro poderá ser vencível ou escusável, que dar-se-á quando uma pessoa normal, utilizando-se da diligência rotineiramente empregada, poderia tê-lo evitado (art. 21, parágrafo único). Resulta da imprudência ou negligência do agente. Nesta hipótese, a culpabilidade subsiste, mas em menor grau. Por isso, embora a sentença seja condenatória, o agente terá a pena diminuída de um sexto a um terço (art. 21, caput, última parte). É causa obrigatória de diminuição de pena e a sua mensuração será de acordo com a maior ou menor culpabilidade do sujeito. Quanto maior a culpabilidade, menor será a redução da pena e vice-versa.
Anoto que houve até mesmo, em um primeiro momento, conforme noticiado pela imprensa, parecer do Gabinete Adjunto de Documentação Histórica (GADH), que é o responsável por definir se o bem será destinado ao acervo público ou ao acervo privado de interesse público da Presidência, no sentido de que aqueles bens seriam do acervo privado do presidente e, por isso, como de sua propriedade, poderia haveria sua venda ou qualquer outra forma de disposição.
E, a partir do momento que Bolsonaro soube da instauração de procedimento pelo Tribunal de Contas da União acerca das joias, os bens foram restituídos, segundo o aduzido pela defesa do ex-presidente.
Destarte, tendo havido errônea interpretação das regras que regem a questão, que não são claras e derivam de uma decisão do Tribunal de Contas da União e não de lei ou de outro ato normativo infralegal, mesmo que se entenda ter havido a adequação das suas condutas a uma norma penal incriminadora (tipicidade formal), incide o erro de proibição que, a depender do grau (invencível ou vencível), pode excluir a culpabilidade, resultando na absolvição, ou a redução da pena, se sobrevier condenação.
Note-se, aliás, que o peculato-tipo exige a vontade livre e consciente de se apropriar de bem móvel que o agente público sabe não lhe pertencer, que está na sua posse ou detenção em razão do cargo ocupado, isto é, deve estar presente o dolo para que ocorra a adequação típica.
Não se aplica ao caso o peculato culposo, que ocorre quando o funcionário público, por culpa (imprudência, imperícia ou negligência), concorre para o crime de outrem, que pode ser peculato-tipo (apropriação ou desvio) ou peculato-furto.
No peculato culposo é imprescindível a posse ou detenção lícita do objeto material pelo funcionário público, em virtude da função exercida, e nexo causal entre a conduta culposa e o peculato-tipo ou peculato-furto. Assim, em virtude de culpa, o funcionário acaba facilitando o peculato-tipo ou peculato-furto praticado por outro funcionário público. Exemplificando, se o vigilante de um hospital público dorme em serviço e permite que computadores sejam subtraídos por agente público que trabalha no local, responderá pelo peculato culposo e o outro funcionário pelo peculato-furto.
Não se trata, à evidência, de concurso de agentes, uma vez que não é possível a participação culposa em crime doloso e vice-versa. Ocorre, apenas, a possibilidade da prática do peculato doloso em virtude de culpa do funcionário público, que deixa de vigiar, como deveria, bens que estão em seu poder em razão da função exercida.
Dessa forma, seja pela ocorrência de erro de proibição, que exclui ou atenua a culpabilidade, ou pela ausência de dolo, que exclui a tipicidade formal, pode ser que, no caso concreto, não seja possível responsabilizar criminalmente os envolvidos nos fatos, o que decerto será muito bem avaliado pelo Ministério Público Federal.
Enfim, o tema é interessante e certamente será alvo de debates doutrinários e judiciais muito em breve.
Autor: César Dario Mariano da Silva – Procurador de Justiça – MPSP. Mestre em Direito das Relações Sociais – PUC/SP. Especialista em Direito Penal – ESMP/SP. Professor e palestrante. Autor de diversas obras jurídicas, dentre elas: Comentários à Lei de Execução Penal, Manual de Direito Penal, Lei de Drogas Comentada, Estatuto do Desarmamento, Provas Ilícitas e Tutela Penal da Intimidade, publicadas pela Editora Juruá.