Mais um passo para o Brasil se tornar um narcoestado, o paraíso para o traficante e para o tráfico de drogas.
Tudo se faz para beneficiar o praticante deste delito, seja na esfera penal, com a aplicação do redutor e de penas insignificantes, seja na esfera processual, pela cada vez maior dificuldade em se apurar o delito, acusar e condenar os autores desta espécie de infração, catalogada originalmente pela Constituição Federal como de suma gravidade, de natureza hedionda e, por isso, não pode ser tratada da mesma maneira do que um crime comum, como o furto de galinha.
Escrevi tantos artigos, dei tantas entrevistas criticando a postura absurdamente leniente dos tribunais superiores com essa espécie de crime e com a criminalidade ordinária em geral, que nem me lembro de todos. E para absolutamente nada, já que, muito embora haja ressonância em primeiro e segundo grau, os tribunais superiores estão empenhados em esvaziar as prisões e lançar para a sociedade cuidar e ser sua vítima traficantes de até mesmo tonelada de droga, que, para eles, podem ser beneficiados até mesmo por penas restritivas de direitos, algo impensado em um país que trata o tráfico de drogas com a seriedade que merece.
Vou citar apenas uma decisão do Superior Tribunal de Justiça, que, em Habeas Corpus — remédio constitucional impróprio para esse mister —, concedeu a ordem para reformar acórdão que manteve a condenação e reduziu a reprimenda de pessoa condenada por tráfico de drogas flagrada com 74 kg de cocaína. Na decisão, a pena imposta de cinco anos de reclusão em regime inicial fechado foi alterada para um ano e oito meses de reclusão, em regime aberto, substituída por duas restritivas de direitos a serem definidas pelo juízo da execução. Como se traficar 74 kg de cocaína fosse algo corriqueiro e sem importância. E pior, o acórdão já havia transitado em julgado, isto é, não cabia mais recurso (fonte: Conjur, 17.07.2024, 20h20min, HC 907401 – SP).
Este é um entre muitos acórdãos que reformaram decisões condenatórias de Tribunais de segundo grau pelo país afora para reconhecer o redutor, conceder o regime aberto e substituir a pena prisional por restritivas de direitos, mesmo daquele traficante flagrado com centenas de quilos e até tonelada de droga.
Para coroar a absurdez dessa política criminal de não mais prender traficantes, foi aprovada a Súmula Vinculante nº 59, obrigando todos os Magistrados e Tribunais do país a fixarem o regime aberto e a substituírem a pena privativa de liberdade por restritiva de direitos quando reconhecido o “tráfico privilegiado” (art. 33, § 4º, da Lei de Drogas) e as circunstâncias judiciais forem favoráveis ao condenado (art. 59 do CP), que deverá, ainda, ser primário e a pena dosada não superar a quatro anos de reclusão. Diz o enunciado da aludida Súmula Vinculante: “É impositiva a fixação do regime aberto e a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direito quando reconhecida a figura do tráfico privilegiado (art. 33, § 4º, da Lei nº 11.343/06) e ausentes vetores negativos na primeira fase da dosimetria (art. 59 do CP), observados os requisitos do art. 33, § 2º, alínea c e do art. 44, ambos do Código Penal”.
De um lado, com aplicações cada vez mais flexíveis do artigo 33, § 4º, da Lei de Drogas, faz-se de tudo para que o tráfico seja considerado “privilegiado”. De outro, por meio de súmula vinculante, obriga-se o magistrado a fixar o regime aberto e a substituir a pena prisional por restrições de direitos quando aplicado o redutor em praticamente todas as ocorrências.
Bingo, está tudo dominado, vez que serem as circunstâncias judiciais favoráveis e o condenado primário já são elementos indispensáveis para a aplicação do redutor, fixação do regime aberto e a substituição da pena prisional por restritivas de direitos; isto é, reconhecido o indevidamente nomeado “tráfico privilegiado”, será, na imensa maioria dos casos, aplicado o redutor com todas suas consequências deletérias para a sociedade ordeira, que apenas quer mais segurança, tranquilidade e paz, que para os tribunais superiores é apenas um detalhe e nada mais.
É certo que de nada adianta apenas criticar e apontar os problemas. Deve-se apresentar soluções. Eu tenho algumas. Primeiramente, buscar de todos os modos legalmente possíveis demonstrar que o acusado por tráfico de drogas não é um criminoso eventual, mas contumaz, que se dedica à prática de crimes e que deles faz sua profissão. Ou, ainda, que integra organização criminosa, sabendo de antemão que os tribunais superiores, com interpretações cada vez mais flexíveis, querem aplicar de todas as formas o redutor para que o traficante não seja preso ou que fique o menor tempo possível na prisão, por meio de benefícios penais que reduzem sobremaneira o tempo que passará no regime fechado (quando possível a fixação) ou no semiaberto, quando existente vagas, senão irá cumprir a pena em sua residência pela inexistência de casa de albergado na imensa maioria dos Estados.
Porém, o melhor seria a alteração do § 4º do artigo 33 da Lei de Drogas, para reduzir a aplicação da benesse. Sugiro a seguinte redação para o dispositivo: “Nos delitos definidos no caput e no § 1º deste artigo, as penas poderão ser reduzidas de um sexto a metade, desde que o agente seja primário, de bons antecedentes, não se dedique à atividade criminosa e nem integre organização criminosa, e se as demais circunstâncias concretas, notadamente a quantidade, diversidade e a natureza da droga ou de outros materiais a ela relacionados apreendidos, recomendarem a redução”.
A redução atual, 1/6 a 2/3, é muito ampla, ensejando na maioria dos casos a imposição de pena de um ano e oito meses de reclusão, que é sistematicamente substituída por restritivas de direitos. Por isso, além da redução da minorante, necessário se faz restringir a aplicação do benefício, levando em consideração circunstâncias concretas a serem analisadas pelo magistrado.
Por mim, revogaria o redutor; no entanto, tenho quase certeza que seria declarada pelo STF a inconstitucionalidade da revogação por violar o princípio da individualização da pena, que é matéria afeta ao Poder Legislativo, nos termos do artigo 5º, inciso XLVI, da Carta Fundamental.
Enfim, algo precisa ser feito para que o Brasil não se torne um narcoestado, à semelhança do que ocorreu e ainda ocorre em alguns países na América Latina e nas comunidades do Rio de Janeiro, onde quem manda e aplica suas regras de conduta, em que há até pena de morte, é o crime organizado, que tem como seu oxigênio o tráfico de drogas.