Questão que merece discussão e profunda reflexão de toda a sociedade é a possibilidade, inclusive direito, de realizar aborto por conta de gravidez resultante de estupro. Aliás, esse direito decorre de a lei não punir o médico e a gestante que assim procederem (art. 128, II, do CP).
Contudo, será que esse direito perdura quando o feto já está formado ou na iminência de estar e o parto e a vida extrauterina forem viáveis?
No dia 24.06.2022 escrevi artigo, publicado na Conjur, discorrendo, de forma técnica, sobre os casos em que não é punível, e consequentemente permitido, o aborto de acordo com nosso direito objetivo (https://www.conjur.com.br/2022-jun-24/cesar-dario-quais-casos-aborto-permitido/). Neste texto, complemento a conclusão daquele, no sentido de que a vida intrauterina (ovo, embrião ou feto) também possui direitos por ser vida em formação.
A Constituição Federal assegura o direito à vida, inclusive, o mais importante dentre todos os direitos (art. 5º, “caput”). E o Código Civil protege os direitos do nascituro, isto é, a vida ainda em formação, que se encontra no ventre materno (art. 2º).
Não me parece que, neste caso, aquela criança, isto mesmo, criança, que simplesmente pelo fato de ainda não ter saído do útero materno, possa ser abortada no estágio final da gestação, sob o argumento de que não foi o ato sexual consentido.
Óbvio, que o estupro é conduta execrável, configurando crime hediondo, um dos mais severamente punidos em nossa legislação; no entanto, deve haver limite de tempo gestacional para a realização do aborto, a fim de ser protegido o ser vivo, que se encontra prestes a ser viável fora do útero materno ou, mais grave, já poder nascer vivo e assim continuar.
Pior ainda é quando o ato sexual foi realmente consentido, mas a mulher (criança ou adolescente) contava com menos de 14 anos de idade na época da concepção. Nesta situação, pune-se o autor do ato sexual porque a lei não permite que menores de 14 anos o pratiquem, mesmo que consentido, cuidando-se de estupro de vulnerável, crime este que, infelizmente, ocorre a rodo no Brasil (art. 217-A, do CP).
Em hipóteses como essas, o feto, já viável ou na iminência de o ser, que nada teve a ver com o estupro, tem o direito à vida, isto é, de vir ao mundo como qualquer um de nós. O direito à vida dele se sobrepõe ao direito da gestante de abortar.
Anoto que, por não ser a gravidez desejada, a criança pode ser dada em adoção sem nenhum problema, existindo legislação específica que permite o ato e uma imensa fila de pretendentes pelo Brasil afora, inclusive no exterior (adoção internacional).
Cuida-se, inclusive, de questão ética dos médicos, que podem até mesmo se negar a realizar o abortamento quando a vida extrauterina já é viável, levando-se em consideração o extraordinário avanço da medicina para estes casos.
Evidente que não estou me referindo à hipótese em que a gestante corre risco de morte em razão do parto. Daí, são duas vidas. Uma intrauterina e outra extrauterina, preponderando a da mãe, sendo, assim, permitido o aborto realizado por médico com fundamento no art. 128, I, do CP.
Resumidamente, em situações como essas, o direito do feto, ou melhor, da criança que ainda não nasceu, mas pode nascer (no momento ou muito brevemente) e ter viabilidade de sobrevivência, prepondera sobre o de livre disposição do corpo pela gestante, uma vez que não alcança o do feto, que tem o direito natural e constitucional de vir ao mundo externo (nascer) e viver.
Ademais, no que concerne especificamente a meninas com menos de 14 anos de idade, quando o feto já se encontra viável para nascer vivo e assim continuar, ser, no meu modo de ver, muito mais traumático para a criança ou adolescente (vítima de estupro de vulnerável) realizar o abortamento, que vai marcá-la por toda vida, do que dar à luz e, se assim quiserem (ela e os responsáveis legais), endereçar a criança à adoção.
Infeliz fato ocorreu há cerca de dois anos com uma criança, de 11 anos de idade, que foi vítima de ato infracional equivalente a estupro de vulnerável (sexo plenamente consensual) e o feto já contava com no mínimo 22 semanas de gestação (há quem fale em até 27 semanas) e, portanto, viável ou praticamente viável para vir ao mundo vivo e sobreviver.
Situação inusitada, aliás, posto que a menina, que tinha 11 anos de idade à época do ocorrido, também praticou ato infracional equivalente a estupro de vulnerável contra o garoto, que igualmente era menor de 14 anos. Só que ao menor de 12 anos de idade se aplicam medidas de proteção previstas no artigo 101 do Estatuto da Criança e do Adolescente, ao passo que ao adolescente as medidas socioeducativas elencadas no artigo 112 do mesmo diploma legal, que são mais severas e visam à reeducação e não à proteção. Assim, ambos os menores foram ao mesmo tempo autores e vítimas de ato infracional, que nada mais é do que a conduta descrita como crime ou contravenção praticada por menor de 18 anos, sujeita ao julgamento pela Vara da Infância e da Juventude e à aplicação de medidas, e não penas, previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente.
Enfim, o tema é complexo e deve ser analisado à luz do direito constitucional, da ética e da moral, inclusive na esfera da deontologia médica, a fim de ser legalmente limitado o período gestacional para a prática do aborto quando a gravidez resultar de estupro.