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TRAFICANTES SÃO MESMO VÍTIMAS DOS USUÁRIOS DE DROGAS? – por Cesar Dario

Dizer que “traficantes são vítimas de usuários de drogas” ultrapassa a lógica e a sensatez, demonstrando total desconhecimento de como o crime organizado, ligado umbilicalmente ao narcotráfico, atua.

É certo que se não houvesse usuários não existiria o tráfico de drogas, da mesma maneira que se não existissem receptadores não teríamos roubos e furtos de celulares e de automóveis.

Mas não é possível exterminar os usuários de drogas e tampouco erradicar os receptadores.

Por isso, toda ação deve ser voltada para a redução significativa do tráfico de drogas, que, muito embora extremamente difícil, não é de todo impossível.

Ocorre que, com a política criminal empregada por nossas Cortes Superiores e por muitos outros Magistrados pelo Brasil afora, essa meta, daí sim, torna-se impossível de ser alcançada.

Chegamos a um ponto em razão da política criminal adotada pelas nossas Cortes Superiores, que o tráfico de drogas se tornou um crime banal, qualquer, como um mero furto de galinha, que, aliás, se cometido com destreza, fraude, rompimento de obstáculo, ou outro modo de execução que o qualifique, tem a pena superior ao tráfico de drogas com a aplicação do redutor (“tráfico privilegiado”). É a lesão ao direito de propriedade, bem jurídico individual e disponível, tratado de forma mais severa do que a saúde pública, bem difuso e indisponível, a violar o princípio da proporcionalidade, sob o prisma da proteção deficiente, que é uma forma de inconstitucionalidade.

O Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça têm sistematicamente proferido decisões no sentido de que pouco importa a quantidade da droga para que seja possível aplicar o redutor do artigo 33, § 4º, da Lei de Drogas, fixar o regime aberto e substituir a pena prisional por restritiva de direitos, bastando que se trate de transportador, conhecido vulgarmente como “mula”.

E o pior que várias dessas decisões são proferidas em sede de Habeas Corpus, de ofício e liminarmente, remédio constitucional este que não se presta para analisar profundamente provas e muito menos para reformar sentença ou acórdão.

Centenas de quilos, ou mesmo tonelada de drogas apreendidas, e o “mula” é solto mediante concessão de liberdade provisória com determinação ao magistrado de primeiro grau ou ao Tribunal de 2º grau para que reveja a pena, aplique o redutor e, se o caso, substitua a privação de liberdade por restrição direitos.

E tal barbaridade ocorre até mesmo em processos com condenação transitada em julgado, isto é, que não cabe mais recurso, algo impensado em países que tratam a criminalidade e o direito de forma séria. Nestes casos, o próprio ministro, liminarmente, cassa a decisão, que deveria ser definitiva e alterável apenas por revisão criminal julgada procedente, reduz a reprimenda para um ano e oito meses de reclusão (em regra), mediante a aplicação do redutor, altera o regime de cumprimento de pena para o aberto, opera a substituição por duas penas restritivas de direitos, normalmente prestação de serviços à comunidade e prestação pecuniária de um dia, e manda para a rua se o condenado estiver preso.

Pasmem, mas é verdade, o traficante flagrado com centenas de quilos prestará serviços à comunidade e pagará uma multa (prestação pecuniária). Só no Brasil mesmo isso é possível, já que não conheço nenhum outro local no mundo em que o tráfico de drogas é tratado com tamanha leniência pelos tribunais superiores.

Ocorre que o “mula” é uma importante engrenagem do crime organizado, justamente o responsável pelo transporte da droga de um local para outro. Quando se trata de quantidade significativa de droga, o crime organizado não a deixaria nas mãos de uma pessoa que não confiasse ou que o integrasse, o que, por certo, afasta a possibilidade de aplicação do redutor, que só é cabível para o pequeno e eventual traficante.

O mesmo tem ocorrido com o chamado “batedor”, aquele que protege o veículo em que se encontra a droga, ou, ainda, vai à frente para verificar se não existe “batida policial” ou outra situação similar, que possa levar à apreensão do entorpecente e a prisão dos traficantes.

Não se trata, do mesmo modo que o “mula”, de participação menor no tráfico de drogas, mas de atividade importante, que, sem ela, em diversas oportunidades, o veículo com a droga seria apreendido e os traficantes presos, com enorme prejuízo para a criminalidade organizada.

Aliás, não existe o pequeno traficante, mas o que é flagrado com pequena quantidade de droga. O grosso dela é mantido em depósito em outro local para não ser apreendido pela polícia e para que possa dizer que a droga portada era para seu consumo pessoal.

Também não há participação menor no tráfico, vez que toda conduta é indispensável para que esta modalidade de delito seja perpetuada e praticada diuturnamente em todo o Brasil, mesmo nas pequenas cidades do interior dos Estados.

Todo traficante faz parte de um enorme mecanismo que sem ele não funcionária. São os soldados do tráfico, que se encontram em todas as frentes e são tão culpados quanto seus chefes, vez que distribuem a droga em todos os locais do país em busca de dinheiro fácil, pouco se importando com as consequências deletérias do comércio maldito, que destrói não só o dependente, mas muitas vezes seus familiares.

O sistema de persecução penal criado pela Carta Constitucional e pelo legislador para o combate e punição ao tráfico de drogas foi tão desfigurado, que essa modalidade de delito está totalmente sem controle. A maioria dos casos que passa nos distritos policiais e nas varas criminais, pelo menos aqui em São Paulo, é de tráfico de drogas e roubos.

E é sabido e consabido que o tráfico de drogas está ligado, direta ou indiretamente, aos mais graves crimes, como homicídios, extorsões mediante sequestro, latrocínios, lavagem de dinheiro, dentre outros de igual gravidade, além de ser o combustível do crime organizado, que dele se vale para manter seu aparato de poder.

Até os crimes de média gravidade, como furtos, notadamente de celulares, que tanto transtorno causam aos moradores de grandes cidades, têm como razão de ser em inúmeros casos a droga, ou seja, para que o dependente consiga saciar seu vício com o dinheiro alheio.

E, mesmo assim, ainda foi descriminalizada pelo STF a conduta de possuir, portar, ter em depósito ou outras similares, até 40 g de maconha, que é presumidamente destinada ao consumo pessoal, exceto se existirem elementos que digam o contrário, isto é, que se destina ao comércio ilícito (tráfico).

Com essa decisão os traficantes estão a fazer o que já faziam, trazer consigo menos de 40 g de maconha, para, no caso de abordagem policial, passarem-se por usuários, que, na prática, em razão da descriminalização, nada haverá com eles por se tratar de mera infração administrativa, que tem como sanção advertência sobre os efeitos das drogas ou obrigação de comparecimento à programa ou curso educativo sobre o malefício do uso de entorpecentes, medidas estas que, se descumpridas, ensejarão outra advertência ou multa, que será paga com prazer por quem tem condições financeiras de fazê-lo e inadimplida por aqueles tidos como hipossuficientes sem que nada possa ser feito (art. 28 da Lei de Drogas).

Na prática, houve um liberou geral para o consumo da maconha, vez que a polícia, em razão da tamanha criminalidade pelo Brasil afora, não vai perder tempo com maconheiros, até porque não está entre suas atribuições constitucionais previstas no artigo 144 da Constituição Federal a detenção de pessoas que estejam a cometer infrações administrativas.

E não há como se negar que quanto maior o consumo de drogas também será maior a quantidade de traficantes e da oferta deste produto altamente nocivo para a saúde pública e individual dos usuários e dependentes.

Já escrevi diversos artigos sobre este tema e não me canso de fazê-lo, vez que antevejo no Brasil o que ocorreu na Colômbia, Bolívia, México e em outros países, que possuem “narcorregiões” dominadas pelo crime organizado, o que já ocorre nas comunidades do Rio de Janeiro em que há um estado ilegal paralelo dentro do Estado legal.

Infelizmente, este é o retrato do Brasil atual sem que nada seja feito a nível legislativo para a alteração deste panorama, uma vez que, se a sociedade ordeira for depender dos Tribunais Superiores, estará exposta aos mais graves crimes, muitos dos quais ligados direta ou indiretamente ao comércio maldito de entorpecentes.

Autor: César Dario Mariano da Silva – Procurador de Justiça – MPSP. Mestre em Direito das Relações Sociais – PUC/SP. Especialista em Direito Penal – ESMP/SP. Professor e palestrante. Autor de diversas obras jurídicas, dentre elas: Comentários à Lei de Execução Penal, Manual de Direito Penal, Lei de Drogas Comentada, Estatuto do Desarmamento, Provas Ilícitas e Tutela Penal da Intimidade, publicados pela Editora Juruá.

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