Não é nenhuma surpresa e nem novidade o Brasil estar cotado entre os 10 países mais perigosos do mundo, ocupando o 7º lugar, atrás apenas da Palestina, Mianmar, Síria, México, Nigéria e Equador. Fomos considerados mais perigosos do que o Haiti, pasmem.
Em 2019 foram assassinadas 41.635 pessoas. Deste total, 3.739 foram mulheres, mas nem todos os casos são de feminicídios, que totalizaram 1.314 (fonte: g1.globo.com – 05.03.2020). Já em 2020, houve aumento de 2.162 mortes, cerca de 5,2%, totalizando 43.892. É certo que já foi bem pior. Em 2017 foram 59.128 e em 2018 51.558 mortes (fonte g1.globo.com – 12.02.2021). Estão contabilizadas nas mortes homicídios dolosos, latrocínios e lesões corporais seguidas de morte (quando a intenção é ferir e por culpa do autor advém a morte da vítima). Em 2023 foram 1467 assassinatos em razão do sexo feminino, ao passo que o número total de homicídios foi de 46.328 pelo Brasil afora.
Muitos países em guerra interna ou externa não têm esses números de mortes. Os motivos são diversos, como a miséria, o crime organizado, drogas lícitas e ilícitas, policiamento ineficiente, punição inadequada e a própria natureza humana, pois desde os tempos mais antigos este tipo de crime existe e sempre existirá, muito embora possa e deva ser reduzido.
E não é por falta de legislação, que temos às pencas, até demais, que o crime e a insegurança só aumentam. Há normas em demasia, sendo certo que muitas poderiam até ser revogadas, que ainda assim seriam excessivas.
A questão mais importante e que pode afetar o combate ao crime é como as normas são interpretadas, vez que no direito nem sempre dois mais dois são quatro.
A leniência dos Tribunais Superiores no enfrentamento ao tráfico de drogas é um dos fatores que contribuíram para o aumento sensível da criminalidade violenta nos últimos anos, haja vista que essa atividade ilícita constitui o principal combustível das facções criminosas na maior parte do território brasileiro.
O sistema de persecução penal criado pela Carta Constitucional e pelo legislador para o combate e punição ao tráfico de drogas foi tão desfigurado por meio de interpretações judiciais altamente garantistas, ultrapassando a normalidade, que essa modalidade de delito está totalmente sem controle. A maioria dos casos que passa nos distritos policiais e nas varas criminais, pelo menos em São Paulo, é de tráfico de drogas e roubos.
Boa parte das condenações por tráfico de drogas é considerada pelos Tribunais Superiores como “tráfico privilegiado”, por levar em consideração apenas a primariedade e bons antecedentes criminais do condenado. Os ministros deixam de analisar como deveriam outras hipóteses que podem determinar que o autuado vive do comércio espúrio, ou seja, dedica-se à atividade criminosa, que é óbice para a aplicação do redutor. E, inclusive, já firmaram entendimento no sentido de que pouco importa para a aplicação do redutor a quantidade de droga apreendida, mesmo que chegue a uma tonelada. A quantidade de droga apreendida e a sua natureza (maior ou menor poder viciante) influenciarão a fração de redução da pena, mas não constituirão empecilho para a incidência do redutor.
Com isso, as Cortes Superiores, em decisões relâmpagos, por meio de Habeas Corpus, aplicam o redutor e concedem o regime aberto com a imposição de penas restritivas de direitos para o traficante, cuja pena, em regra, gira em torno de um ano e oito meses de reclusão (redução máxima). E isso ocorre mesmo que o processo esteja encerrado, ou seja, a condenação tenha transitado em julgado, o que, a rigor, só deveria advir em revisão criminal e nunca em Habeas Corpus, que não serve para analisar com profundidade as provas produzidas e nem pode rescindir condenações definitivas pelo mérito, mesmo no tocante à dosimetria das penas.
Em nenhum lugar do mundo traficante de drogas é tratado pelo Judiciário com tamanha benevolência. E a punição inadequada é incentivo para o cometimento de outros delitos, seja pelo próprio condenado (reincidência) ou por outro indivíduo qualquer, por saber que, caso identificado, autuado, processado e condenado, a punição é, normalmente, extremamente branda para o primário e de bons antecedentes criminais, valendo a pena arriscar. Pensa ele: até ser identificado e flagrado, o que ocorre em percentual muito baixo, já ganhei muito dinheiro.
Ademais, as drogas estão direta ou indiretamente associadas a grande parte dos crimes violentos, tais como homicídios, latrocínios, roubos e sequestros-relâmpago, bem como, de modo geral, à atuação das organizações criminosas. Essas organizações são responsáveis por um número infindável de homicídios nas cidades brasileiras, onde, em muitas delas, instaura-se uma verdadeira guerra pelo controle territorial, resultando na morte de inocentes e na disseminação do terror entre os habitantes das comunidades em que operam.
São traficantes que matam outros traficantes; traficantes que matam usuários que não pagaram dívida de drogas; usuários de drogas que cometem os mais graves crimes para saciar o vício; disputas de territórios entre facções; brigas sob o efeito de drogas lícitas e ilícitas etc.
Por certo que leis mais duras, que facilitem e simplifiquem o combate ao crime, ajudam e muito. No entanto, elas pouco ou nada valem se os tribunais não as aplicam como deveriam e, muitas vezes, ainda as julgam inconstitucionais, no todo ou em parte. Vejam o que ocorreu com a Lei dos Crimes Hediondos, Lei de Drogas e Estatuto do Desarmamento, que tiveram algumas de suas normas julgadas inconstitucionais pela Excelsa Corte, reduzindo a eficácia no combate aos crimes nelas descritos.
Já escrevi diversos artigos e participei de várias entrevistas sobre esse tema, que estão na Rede, bastando pesquisar para quem se interessar.
Evidentemente, o descaso no combate ao maior câncer do país contribuiu para esse quadro alarmante: a corrupção, que infesta o aparelho estatal desde os mais simples funcionários públicos até os mais importantes empresários e agentes políticos brasileiros. Em razão disso, não raras vezes a polícia deixa de exercer suas funções como deveria. Ademais, mesmo no âmbito da Justiça, há casos de corrupção destinados a beneficiar, sobretudo, os criminosos mais poderosos, inclusive integrantes do crime organizado.
E, como se não bastassem os casos de corrupção sistêmica no aparelho estatal, o dinheiro público, que deveria ser destinado à melhoria da educação, da saúde e de toda a infraestrutura necessária para que a população mais pobre viva com dignidade, é constantemente desviado ou mal aplicado por pessoas incompetentes, nomeadas para cargos-chave da administração pública ou de empresas estatais por razões políticas e outras de natureza inconfessável, facilmente perceptíveis.
Vejam o que ocorreu na Petrobrás e o que acontece atualmente em grandes estatais e fundos de pensão. Alguém terá de pagar essa conta. E adivinhem quem será.
Até mesmo aposentados e pensionistas foram “roubados” por pessoas inescrupulosas e, quando se tenta apurar os fatos para punir os culpados, o sistema reage e faz de tudo para atrapalhar as investigações. Por qual motivo será?
A criminologia aponta que uma das causas da criminalidade é a falta de estrutura básica para se viver com dignidade, levando muitos a praticar delitos patrimoniais e o tráfico de drogas como forma de sobrevivência e, também, para angariar bens que não podem adquirir licitamente. Claro que não justifica, mas explica o porquê de algumas pessoas ingressarem na vida marginal.
Com efeito, corruptos, corruptores e dilapidadores do dinheiro público, em geral, possuem parcela significativa de culpa pela onda de criminalidade que assola o país, na medida em que são diretamente responsáveis pela miséria e pela ausência de estrutura mínima capaz de assegurar condições dignas de vida a milhões de pessoas. Os bilhões de reais desviados ou ilicitamente apropriados, que deveriam ser aplicados em benefício dos mais pobres, acabam por ser direcionados a contas bancárias desses criminosos inescrupulosos, que agem livres, leves e soltos, amparados pela crença na impunidade.
Para agravar ainda mais esse cenário de impunidade no tocante aos chamados crimes do colarinho branco, pessoas poderosas aparentam estar blindadas por decisões judiciais, no mínimo, polêmicas. Tanto é assim que já se cogita a criação de um código de ética para magistrados de todas as instâncias, iniciativa que enfrenta a previsível resistência de alguns, avessos à fiscalização e ao controle de suas condutas profissionais e pessoais, não obstante a relevância e a responsabilidade inerentes ao cargo assim o exijam.
Interessante notar que, nessa hipótese, bastaria a observância do que dispõe a Lei Orgânica Nacional da Magistratura (LOMAN) e da legislação positivada, especialmente no que se refere às condutas atentatórias à dignidade do cargo, bem como às regras de suspeição e impedimento, para que grande parte do problema estivesse resolvida.
O exemplo deveria vir de cima, mas, no país do jeitinho brasileiro, conhecido internacionalmente como da corrupção e da impunidade, não é isso que ocorre, muito pelo contrário.
Por esse motivo não é difícil compreender o porquê de a criminalidade organizada e os delitos por ela praticados só aumentarem. Se os mais poderosos podem praticar delitos à vontade e nada ocorre, porque eu não posso, pensam os mais jovens, normalmente menos favorecidos financeiramente, além daqueles que não possuem escrúpulos em todas as camadas sociais.
Com o descaso de décadas em relação ao crime organizado, este tomou conta do país e está encrustado em todas as esferas, pública e privada. Possui inclusive regras de conduta, com pena de morte para aqueles que as descumprem.
E a insegurança no Brasil não se dá apenas no que é pertinente aos crimes mais graves, muitos cometidos pelas facções criminosas. Há, da mesma maneira, delitos perpetrados pela criminalidade ordinária, como furtos, roubos e outros do gênero, que causam pânico no cidadão cumpridor de seus deveres.
Ninguém mais se sente seguro ao sair às ruas. O aparelho celular precisa estar muito bem guardado e protegido, pois, nas médias e grandes cidades, utilizá-lo em via pública tornou-se um verdadeiro convite à sua subtração, seja por furto ou roubo, muitas vezes com desfechos trágicos, inclusive a morte.
E, nas mãos desses bandidos, em minutos as contas bancárias são invadidas com enorme prejuízo para o cidadão de bem. Quem já teve um celular subtraído sabe muito bem as suas graves consequências.
Conduzir veículo automotor à noite virou uma aventura extremamente perigosa. E isso até nos bairros mais nobres. Na periferia então, nem se fale. E dá-lhe carro blindado para quem pode comprar.
Até mesmo levar o cão para passear durante a noite passou a ser evitado pelos moradores das grandes e médias cidades, já que, não raras vezes, há marginais à espreita para realizar furtos ou roubos, se bobear do próprio animal.
É certo que ainda há cidades, sobretudo as pequenas, que ainda se pode viver com mais tranquilidade. No entanto, até quando?
Claro que o combate à criminalidade não se dá apenas por meio do Direito, uma vez que diversos fatores sociais, econômicos e culturais a influenciam. Contudo, a correta e rigorosa aplicação da lei aos crimes mais graves certamente contribuiria para a redução da criminalidade, pois o temor de uma punição severa, certa e efetiva tende a desencorajar a prática delituosa.
O Brasil atual é um país de contrastes: riquezas naturais e culturais imensuráveis convivem com índices de violência e corrupção que arrastam a população para o atoleiro. Cada homicídio, cada furto, cada desvio de recurso público é um reflexo do descaso com a vida e com o futuro da nação. Enquanto o crime organizado e a impunidade se fortalecem, cresce também o medo e a sensação de insegurança. Resta-nos, portanto, mais do que legislar ou discutir normas: é urgente resgatar a cidadania, exigir rigor na aplicação da lei e restaurar a dignidade das instituições. Pois, sem justiça efetiva e compromisso com o bem comum, o Brasil continuará a ser palco de tragédias evitáveis, e a esperança do cidadão permanecerá à mercê da indiferença daqueles que deveriam protegê-la.
Viver no Brasil atual, por todos esses motivos, além de vários outros, sobretudo políticos e econômicos, está bem difícil, e o que mais se vê é a desesperança do brasileiro comum, que não visualiza uma luz no fim do túnel, ao menos nos próximos anos.
Enfim, o que se espera é a atuação efetiva das autoridades responsáveis pela segurança pública, sejam policiais, magistrados ou membros do Ministério Público, de forma apartidária e sem qualquer viés ideológico, para que possamos superar esse quadro aterrador e sair do vergonhoso 7º lugar dos países mais inseguros e perigosos do mundo.
Autor: César Dario Mariano da Silva – Procurador de Justiça – MPSP. Mestre em Direito das Relações Sociais – PUC/SP. Especialista em Direito Penal – ESMP/SP. Professor e palestrante. Autor de diversas obras jurídicas, dentre elas: Comentários à Lei de Execução Penal, Manual de Direito Penal, Lei de Drogas Comentada, Estatuto do Desarmamento, Provas Ilícitas e Tutela Penal da Intimidade, publicadas pela Editora Juruá.










