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A revisão da dosimetria das penas para os condenados pelos atos do 8 de janeiro – por Cesar Dario

A resistência à concessão da anistia aos envolvidos nos Atos de 8 de janeiro é enorme, tanto por parte do Governo Federal, quanto pelo próprio Congresso Nacional, além de haver imensa probabilidade de veto presidencial e declaração de inconstitucionalidade da lei pelo STF.

Por isso, o Congresso Nacional prepara projeto de lei para reduzir as penas dos participantes dos atos.

Ainda não é sabido com certeza o teor do projeto de lei, que, provavelmente, criará uma causa de diminuição de pena para todos ou alguns dos envolvidos que praticaram ou deixaram de praticar alguma conduta.

Há, por outro lado, os que não aceitam a redução das penas para os idealizadores do suposto golpe de Estado, estando aí incluídos Bolsonaro e integrantes de seu governo.

Sou totalmente favorável à anistia a todos os envolvidos, direta ou indiretamente, nos Atos de 8 de janeiro, que seria a melhor forma, senão a única, de serenar os ânimos da população e colocar uma pá de cal nesse triste episódio de nossa história, a fim de que o Brasil retome a normalidade política e jurídica.

Não vou discutir aqui se houve de fato crime, se todos os participantes dos atos deveriam ter sido condenados e se o STF era competente para julgar pessoas sem prerrogativa de foro, o que já o fiz em diversos artigos, que se encontram na Rede, bastando pesquisar. No entanto, não há como negar a desproporcionalidade das penas aplicadas, que giram em torno de 14 a 27 anos de prisão.

Como cansei de escrever e falar não vejo nenhuma inconstitucionalidade na anistia, que é ato privativo do Poder Legislativo e vedada apenas para os crimes hediondos e equiparados, sendo certo que nenhum dos executores do quebra-quebra em 8 de janeiro e nem os condenados por serem os idealizadores de um imaginário golpe de Estado praticaram essa espécie de delito.

Mas, ao que tudo indica, mesmo que a anistia seja aprovada, o que será bem difícil, notadamente no Senado Federal, haverá veto presidencial, que, malgrado derrubado, será julgada sua constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal, onde já há ministros antecipando seu voto, como se isso fosse juridicamente possível, e indicando que a anularão.

Com efeito, muito embora não seja o melhor caminho, longe disso, há grande possibilidade de que as penas sejam readequadas, o que já deveria ter sido feito por ocasião da condenação, que colocou todos no mesmo balaio e sequer se interessou em individualizar as condutas.

Deixou-se de ser observado algo básico em direito penal, a dosimetria das penas, corolário do princípio da individualização da pena, previsto no artigo 5º, inc. XLVI, da Constituição Federal.

A individualização da pena desenvolve-se em três etapas: a legislativa, a judicial e a executória.

Na primeira, caberá à lei fixar as penas que serão aplicadas para cada tipo penal. A quantidade da pena deve guardar proporção com a importância do bem jurídico tutelado e a gravidade da ofensa. Por isso, cada tipo penal prevê quantidade mínima e máxima de pena e, em alguns casos, espécies distintas de sanções penais, que podem ser aplicadas, dependendo do caso, alternativa ou cumulativamente.

Na etapa judiciária, caberá ao juiz, à vista da infração cometida, escolher a pena que será aplicada dentre as cominadas no tipo penal, dosar a sua quantidade entre o mínimo e máximo previsto, fazer inserir causas que possam aumentar ou diminuir a reprimenda, fixar o regime de cumprimento da pena privativa de liberdade, bem como analisar possível substituição por pena mais branda. Cuida-se de critério em que o julgador possui discricionariedade regrada. Isso porque, embora tenha liberdade de escolha quanto à pena que irá aplicar, bem como sua quantidade, deve obediência a regras previstas no Código Penal.

Por fim, após a aplicação da pena, há necessidade de sua execução. As diretrizes quanto à execução da pena estão previstas principalmente no Código Penal e na Lei de Execuções Penais.

O interessante é que, publicada lei penal mais benéfica, ela retroage em favor de todos os investigados, acusados e condenados, alcançando até mesmo aqueles que estejam em cumprimento de pena ou já a tenham resgatado, nos exatos termos do artigo 5º, inciso XL, da Constituição Federal, e artigo 2º, parágrafo único, do Código Penal.

Por outro lado, a norma penal mais severa, que majora a pena para os eventuais e supostos mandantes dos delitos (caso seja aprovada norma penal nesse sentido), somente alcançará fatos futuros, não sendo aplicável aos Atos de 8 de janeiro.

O que levará fatalmente à discussão em cada caso de forma individualizada é se a participação do agente foi ou não de menor importância, se cometeu os crimes sob a influência de multidão em tumulto e se não é idealizador, financiador ou organizador dos atos.

Aliás, o fato de o agente ter praticado crime diverso do pretendido ou com participação de menor importância, além de ter sido influenciado pela multidão em tumulto, já deveria ter sido levado em consideração na individualização das penas dos participantes, posto que há normas penais objetivas para tanto.

Quero chamar a atenção para a individualização das penas entre os participantes do delito, que, em razão da maior ou menor culpabilidade, poderão ter penas diferenciadas, com fundamento no artigo 29 do Código Penal.

Diz a norma:

Art. 29 – Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade. § 1º – Se a participação for de menor importância, a pena pode ser diminuída de um sexto a um terço. § 2º – Se algum dos concorrentes quis participar de crime menos grave, ser-lhe-á aplicada a pena deste; essa pena será aumentada até metade, na hipótese de ter sido previsível o resultado mais grave”.

Em princípio, devido à teoria unitária, todos os participantes de um crime sofrerão a mesma pena abstratamente considerada, segundo o grau de sua culpabilidade. A parte final do dispositivo, que foi introduzida pela reforma penal de 1984, deixa claro que o juiz poderá aplicar pena diferenciada para os participantes do delito, desde que a análise da culpabilidade deles assim o recomende.

O art. 29 do Código Penal é corolário do princípio da individualização da pena, que obriga o juiz a analisar uma série de circunstâncias antes de fixar a reprimenda. Portanto, v.g., em um homicídio praticado por várias pessoas, os coautores e partícipes poderão ter penas diversas estabelecidas de acordo com a culpabilidade de cada um.

O legislador decidiu que a pena do partícipe também deverá ser individualizada de acordo com o grau de sua participação. Assim, se a participação for de menor importância, a pena poderá ser diminuída de um sexto a um terço (art. 29, § 1º, do CP).

Enquanto o autor é aquele que pratica a conduta prevista no tipo penal objetivo, o partícipe é quem concorre de qualquer modo para a prática do crime sem executar o verbo nuclear do tipo penal, seja por induzimento, instigação ou auxílio secundário ao autor. Por exemplo, aquele que adentra a residência e subtrai os bens é autor do crime de furto; já o sujeito que permanece do lado de fora vigiando para alertar caso alguém apareça é partícipe, assim como aquele que incita o autor a ingressar na residência para cometer o delito.

Com efeito, havendo graus de participação no delito, a de menor importância deverá ser reconhecida quando a conduta do agente tiver exercido pequena eficiência para a execução do crime. Essa diminuição será devido à menor contribuição causal. Assim, quanto maior for a contribuição do agente para a prática do crime, menor deverá ser a redução da pena e vice-versa. Trata-se de direito subjetivo do agente e, caso reconhecida a participação de menor importância na sentença, a redução da pena se torna obrigatória.

Além do mais, pode ocorrer que o autor principal pratique um crime mais grave do que o pretendido pelo partícipe, ensejando o desvio subjetivo entre os participantes (art. 29, § 2º, do CP). Nesse caso, o partícipe responderá pelo crime pretendido e o executor pelo crime mais grave ocorrido. Se o resultado mais grave for previsível ao partícipe, a pena pelo delito que lhe foi imputado será aumentada até a metade. Exemplo: João quer praticar um delito de furto e combina-o com Carlos. Este entra na casa, enquanto João fica dando cobertura. Porém, Carlos estupra a dona da casa, que lá estava por não ter ido viajar como pensavam os larápios e subtrai os bens com o emprego de violência. Assim, Carlos responderá por estupro e roubo e João por furto. Entretanto, se o resultado mais grave fosse previsível para João, sua pena pelo furto será aumentada até a metade.

Difícil crer e defender tecnicamente que todos os participantes daqueles atos sejam merecedores das mesmas sanções, notadamente aqueles que não vandalizaram os prédios públicos e apenas estavam no local sem nada mais fazer ou querer, que, para mim, sequer deveriam ter sido denunciados e muito menos condenados.

Ademais, aquele que comete o crime sob a influência da multidão em tumulto, fenômeno conhecido como “efeito manada”, terá a pena reduzida como atenuante genérica, desde que não o tenha provocado. Dispõe o artigo 65, inciso III, alínea “e”, do Código Penal, que a pena será sempre atenuada quando “cometido o crime sob a influência de multidão em tumulto, se não o provocou”.

A psicologia explica a influência da multidão em tumulto sobre o ânimo do agente. Nem sempre é fácil aos componentes de uma multidão permanecerem à margem de atos ilícitos eventualmente praticados pela turba enfurecida ou perturbada, o que justifica a atenuação da pena, desde que o agente não seja o provocador do tumulto.

E tudo indica que muitos dos participantes foram influenciados pela turba perturbada, o que os levou a praticar os atos, ensejando, necessariamente, a redução das suas penas, que, normalmente, é de 1/6.

Pode, inclusive, ser publicada norma penal que reduza as penas para os condenados maiores de 70 anos de idade e para os que tenham filhos menores de idade que dependam de sua presença, a ser aplicada apenas para os participantes e idealizadores do Atos de 8 de janeiro e não para outros delitos..

Malgrado não ser o ideal, no meu modo de ver, que preferiria a anistia para que fosse realizada justiça para a imensa maioria dos participantes dos atos, não deixa de ser boa a iniciativa e, o mais importante, é que não haverá como se julgar a alteração legislativa inconstitucional, posto que se trata de atribuição do Poder Legislativo de modificar ou criar normas penais, sejam mais severas ou brandas, e, por ser a retroatividade da norma penal mais benéfica fruto de determinação constitucional e legal, não poderá ser desconsiderada pelos magistrados.

Torço para que a anistia seja aprovada e de forma ampla, geral e irrestrita, alcançando a todos os condenados, sejam os executores ou os supostos idealizadores para que possamos seguir em frente em busca do que é melhor para o nosso país.

Contudo, não sendo possível o perdão soberano, a readequação das penas impostas mediante a elaboração de uma nova dosimetria, diante da aprovação de lei que a isso possibilite, embora não seja o ideal, é uma forma de beneficiar a todos os condenados, muitos deles presos há quase três anos, o que é mais do que suficiente, muito embora defenda que a imensa maioria deles deveria ter sido condenada apenas por crime de dano (ao patrimônio público ou especialmente protegido) ou mesmo absolvida por não terem cometido nenhum crime, simplesmente estando no local sem nada fazer, com o único intuito de protestar contra alguma situação que entendiam não ser correta.

Vamos aguardar e rezar para que prevaleça o bom senso dos parlamentares e a justiça seja restabelecida, ou pela anistia, que é o ideal, ou, não sendo possível, pela readequação das penas por meio de uma dosimetria justa, que leve em consideração a tecnicidade do direito penal e a proporcionalidade, princípio basilar do nosso sistema jurídico.

Autor: César Dario Mariano da Silva – Procurador de Justiça – MPSP. Mestre em Direito das Relações Sociais – PUC/SP. Especialista em Direito Penal – ESMP/SP. Professor e palestrante. Autor de diversas obras jurídicas, dentre elas: Comentários à Lei de Execução Penal, Manual de Direito Penal, Lei de Drogas Comentada, Estatuto do Desarmamento, Provas Ilícitas e Tutela Penal da Intimidade, publicados pela Editora Juruá.

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