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Eduardo Bolsonaro e Paulo Figueiredo cometeram crime de coação no curso do processo? – por Cesar Dario

A pedido da Procuradoria Geral da República foi instaurada investigação criminal perante o Supremo Tribunal Federal para apurar supostos crimes de coação no curso do processo, abolição violenta do estado democrático, atentado à soberania e de embaraço à apuração de infração penal que envolva organização criminosa, que supostamente teriam sido cometidos pelo deputado federal licenciado Eduardo Bolsonaro e pelo jornalista Paulo Figueiredo, que, agindo em concurso de pessoas, entabularam conversações com parlamentares e outros políticos norte-americanos com a finalidade de obter a aplicação de normas legais locais para a punição de um ministro do Supremo Tribunal Federal e de outros agentes públicos, que, segundo eles, teriam cometido atos abusivos e arbitrários que, em tese, caracterizariam ilícitos penais de acordo com a legislação brasileira, além de constante cerceamento da liberdade de expressão e de manifestação do pensamento, direito protegido pela 1ª emenda da Constituição estadunidense.

Após as investigações, a Procuradoria Geral da República ofereceu denúncia pelo crime de coação no curso do processo contra Eduardo Bolsonaro e, também, contra Paulo Figueiredo, por estarem mancomunados nos EUA para ameaçar Ministros do Supremo Tribunal Federal e, com isso, beneficiar os acusados de serem os idealizadores e organizadores dos famigerados Atos de 8 de janeiro.

E a denúncia foi recebida pela Excelsa Corte por unanimidade de votos, tornando a ambos os réus em processo criminal. Anoto que nesta fase processual bastam meros indícios suficientes de autoria e prova da existência do crime (materialidade) para que a denúncia seja recebida, isto é, a dúvida se resolve em favor da sociedade. O que já não ocorre por ocasião da sentença em que a dúvida se resolve em favor do réu.

Não vou tecer comentários sobre eventual impedimento para conduzir as investigações e decidir os incidentes procedimentais em virtude de o Ministro relator ser eventual sujeito passivo secundário no crime de coação no curso do processo.

Vou tratar apenas do crime imputado, isto é, de coação no curso do processo.

E, tecnicamente, no que consiste este delito?

O crime de coação no curso do processo está elencado no art. 344 do Código Penal. Diz o dispositivo:

Usar de violência ou grave ameaça, com o fim de favorecer interesse próprio ou alheio, contra autoridade, parte, ou qualquer outra pessoa que funciona ou é chamada a intervir em processo judicial, policial ou administrativo, ou em juízo arbitral: Pena. Reclusão, de um a quatro anos, e multa, além da pena correspondente à violência”.

A conduta consiste em usar de violência ou grave ameaça contra autoridade (Juiz, Delegado de Polícia etc.), parte (autor, réu, membro do Ministério Público etc.), ou qualquer outra pessoa que funciona ou é chamada a intervir em processo judicial ou administrativo, inquérito policial ou procedimento do juízo arbitral (testemunha, perito, vítima, jurado, escrivão etc.).

O verbo do tipo é usar, que significa empregar ou utilizar.

O modo de execução do delito é a violência à pessoa ou a grave ameaça endereçada à própria vítima (ameaça direta) ou a pessoa a ela ligada por laços familiares ou de afeição (ameaça indireta).

A finalidade do agente ao empregar esses modos de execução deve ser o favorecimento de interesse próprio ou alheio relacionado com processo judicial ou administrativo, inquérito policial ou procedimento do juízo arbitral.

Assim, para que ocorra este delito, deve haver processo ou procedimento em curso, inclusive inquérito policial, e a intenção do agente ao empregar a violência à pessoa ou a grave ameaça é a de favorecer a si ou a terceiro nos referidos feitos (processo ou procedimento).

Partamos para o caso em concreto.

Eduardo Bolsonaro e Paulo Figueiredo têm de fato trabalhado nos EUA junto a autoridades norte-americanas para que sejam aplicadas sanções a ministros da Excelsa Corte e outros agentes públicos, que, segundo eles, teriam cometido crimes contra os direitos humanos, além de cercear a liberdade de manifestação do pensamento.

A primeira indagação que se faz é: houve grave ameaça, elementar do crime de coação no curso do processo?

A ameaça é integrante de vários tipos penais, funcionando ora como elementar, ora como circunstância, que agravará a pena.

Ela poderá configurar crime em si mesma (art. 147, do CP), mas, em regra, é modo de execução de um delito.

A ameaça consiste na revelação à vítima do propósito de lhe causar um mal grave, atual ou futuro, que só o agente terá como evitar. Essa promessa de mal pode ser da produção de dano ou de perigo, pouco importando qual deles seja prenunciado pelo agente.

Pergunto: ameaçar alguém de aplicar institutos legais para buscar sua punição, ou seja, a justiça, de acordo com o agente, caracteriza a grave ameaça elemento do referido tipo penal?

Com o devido respeito, não me parece haver adequação típica neste delito, pouco importando se os institutos jurídicos forem nacionais ou estrangeiros, desde que lícitos em seu país de origem.

Ora, dizer que vai processar alguém por conta de um crime praticado de acordo com o entendimento do agente não caracteriza grave ameaça e muito menos injusta, pelo contrário, por estar o sujeito a buscar a realização da justiça segundo seu entendimento, seja no Brasil ou no exterior.

O que não se faz possível são ameaças injustas e ilegais, como de morte, sequestro, agressão e outras do gênero.

Notem que sequer me refiro à violência, que é a física contra a pessoa, que não é o caso por não ter sido sequer levantada ou questionada.

Para a caracterização da coação no curso do processo a finalidade do agente ao empregar esses modos de execução (violência física contra pessoa ou grave ameaça) deve ser o favorecimento de interesse próprio ou alheio relacionado com algum processo judicial ou administrativo, inquérito policial ou procedimento do juízo arbitral em curso (elemento subjetivo do tipo).

Mesmo a grave ameaça de um mal justo pode caracterizar o delito. Isso pode ocorrer quando, por exemplo, o investigado pela prática de um crime ameaça o Delegado de Polícia responsável pela investigação de denunciá-lo à Corregedoria por ter atropelado uma pessoa, fato este realmente ocorrido e desconhecido dos órgãos de controle interno e externo, com o intuito de ser favorecido no inquérito policial. Note-se que essa notícia de crime (atropelamento) é justa, mas o propósito com que ela foi empregada é injusto, caracterizando-se a grave ameaça exigida pelo tipo penal do delito em questão.

Por outro lado, a simples declaração aberta e pública de que irá buscar todos os meios legais para punir uma ou outra pessoa por infrações cometidas, mesmo que de fato o faça, conversando com agentes políticos estadunidenses, não me parece grave ameaça apta a caracterizar o crime de coação no curso do processo, notadamente sem que haja a finalidade, expressa ou implícita, de favorecer a ele próprio ou a terceira pessoa em processo criminal ou investigação policial em curso, para constranger e atemorizar o julgador ou qualquer outra pessoa que funciona ou é chamada a intervir nestes feitos, como é o caso de membros do Ministério Público e policiais.

Dificilmente quem atua em órgãos da persecução penal não foi ameaçado de representação em sua corregedoria interna ou nacional, ou até mesmo em organismos internacionais, como a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, ao oficiar em um ou outro caso, no mais das vezes, de relevância. E isso nem de longe caracteriza a grave ameaça caracterizadora do crime de coação no curso do processo, mesmo que a intenção do sujeito fosse a de amedrontar o agente público oficiante no processo ou procedimento em curso.

Anoto que, para esse efeito, pouco importa se o pedido de providências (representação) é realizado no Brasil ou em outro país, mormente quando os instrumentos de controle interno são ineficazes ou mesmo inexistentes, não podendo tal proceder ser tido como grave ameaça, elementar exigida pelo tipo penal em estudo, mas de exercício de um direito, seja aqui (de petição) ou no exterior, segundo a legislação estrangeira.

Pretender a aplicação da lei, no Brasil ou no estrangeiro, não pode caracterizar embaraço e muito menos impedimento a nenhuma investigação, por se tratar de um direito de quem se acha injustiçado ou que vislumbre arbitrariedade ou abuso de poder. Além do direito constitucional de petição, qualquer pessoa pode noticiar à autoridade competente a ocorrência de uma infração penal, civil ou administrativa para que seja apurada e aplicadas as sanções respectivas. E no estrangeiro não é diferente, de acordo com a normatização local. Nunca o exercício de um direito pode caracterizar infração penal.

No que tange à aplicação de sanções (ou tarifas) econômicas contra o Brasil — medidas com as quais absolutamente não concordo —, conforme divulgado pela imprensa, não houve assunção de autoria pelos denunciados, que negam tê-las sugerido ou influenciado, além de não possuírem qualquer controle sobre tais atos, de iniciativa exclusiva do governo norte-americano.

Ainda que se admitisse alguma participação dos denunciados na imposição dessas sanções, não se trataria de ameaças, se existentes, dirigidas a Ministros da Suprema Corte ou a membros dos órgãos de persecução penal, mas sim ao Poder Executivo e ao Poder Legislativo para a aprovação da anistia a todos os envolvidos nos atos de 8 de janeiro e em outros atos tidos como ilícitos em determinado espaço de tempo, nos quais não tramita processo ou investigação relacionados aos Atos de 8 de janeiro. Ademais, um Poder da República não pode figurar como vítima de ameaça, porquanto a tipicidade da conduta exige pessoa física individualizada, e não órgão constitucional do Estado. Assim, a conduta em questão, ainda que comprovada, não encontra adequação típica no delito de coação no curso do processo.

Não poderia, ainda, deixar de ressaltar dois pontos fundamentais.

Em primeiro lugar, de acordo com o nosso Código Penal, no seu artigo 7º, § 2º, alínea “b”, que trata da extraterritorialidade condicionada da legislação penal, a lei brasileira somente será aplicada se o fato também for punível no país onde foi praticado. Como, no caso, há lei que permite a tomada de providências nos EUA para a hipótese em comento, segundo o entendimento do deputado licenciado e do jornalista, tal conduta não é punível no Brasil.

Em segundo lugar, o deputado se encontra licenciado do seu mandato, ou seja, sua conduta não foi praticada no exercício de suas funções parlamentares. Assim, seja por estar licenciado e, também, por não ter sua conduta relação com suas atividades funcionais, atuando como particular, entendendo-se pela ocorrência de infração penal, inaplicável a prerrogativa de foro, devendo ser investigado e julgado segundo a regra geral, no caso, pelo juízo de primeiro grau. A respeito deste tema, a Excelsa Corte já se manifestou e decidiu que, mesmo que o Parlamentar Federal cometa o crime no exercício do mandato (após a diplomação), caso não possua relação com suas funções parlamentares, será julgado no juízo de primeiro grau, de acordo com a regra comum (STF: AP 937/RJ, Tribunal Pleno, Rel. Min. Roberto Barroso, m.v., j. 03.05.2018). E, nesta hipótese, com muito mais razão, Paulo Figueiredo, que sequer ocupa cargo público, nem de longe poderia ser processado perante a Excelsa Corte por não possuir prerrogativa de foro.

Com efeito, por todos os ângulos que se examine a hipótese, com o devido respeito a quem entende de forma contrária, não vislumbro a ocorrência de crime de coação no curso do processo e nem outro qualquer, que possa ser imputado a Eduardo Bolsonaro e Paulo Figueiredo em razão de suas declarações prestadas, transmitidas para todo o Brasil, e atos realizados nos EUA, visando a punição de agentes públicos brasileiros.

Resumindo:

Para a condenação pelo crime de coação no curso do processo (art. 344 do CP), devem ser respondidas afirmativamente às seguintes indagações:

1) houve o emprego de violência à pessoa ou grave ameaça? 2) havia processo judicial ou investigação criminal em curso? 3) a intenção do agente era a de favorecer a si ou a terceiro ao praticar a conduta? 4) a violência ou a grave ameaça foram endereçadas à testemunha, parte, Magistrado ou qualquer outra pessoa que funciona ou é chamada a intervir em processo ou procedimento em curso?

Faltando qualquer um desses elementos não haverá o crime de coação no curso do processo.

Autor: César Dario Mariano da Silva – Procurador de Justiça – MPSP. Mestre em Direito das Relações Sociais – PUC/SP. Especialista em Direito Penal – ESMP/SP. Professor e palestrante. Autor de diversas obras jurídicas, dentre elas: Comentários à Lei de Execução Penal, Manual de Direito Penal, Lei de Drogas Comentada, Estatuto do Desarmamento, Provas Ilícitas e Tutela Penal da Intimidade, publicadas pela Editora Juruá.

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